sábado, 3 de março de 2012

Preguiça


Excerto da introdução à edição brasileira do livro 'O Direito à Preguiça', de Paul Lafargue

Por MARILENA CHAUÍ

A preguiça, todos sabem, é um dos sete pecados capitais.
Ao perder o Paraíso Terrestre, Eva e Adão ouvem do Senhor as terríveis palavras que selarão seus destinos.
À primeira mulher, Deus disse: “Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te levará ao homem e ele te dominará.” (Gn. 3:16). Ao primeiro homem, disse Jeová: “Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida (…). Com o suor de teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás.” (Gn. 3:17-19).

Ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do trabalho como pena imposta pela justiça divina e por isso os filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar.
Porque a pena foi imposta diretamente pela vontade de Deus, não cumpri-la é crime de lesa-divindade e por essa razão a preguiça é pecado capital, um gozo Cujo direito os humanos perderam para sempre.

O laço que ata preguiça e pecado, é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo.
É assim que aparecem para os brasileiros brancos as figuras do índio preguiçoso e do negro indolente, construídas no final do século XIX, quando o capitalismo exigiu a abolição da escravatura e substituiu a mão-de-obra escrava pela do imigrante europeu, chamado trabalhador livre (curiosa expressão numa sociedade cristã que não desconhece a Bíblia nem ignora que o trabalho foi imposto aos humanos como servidão!).
É ainda a mesma imagem que aparece na construção, feita por Monteiro Lobato no início deste século, do Jeca Tatu, o caipira ocioso devorado pelos vermes enquanto a plantação é devorada pelas saúvas.

Nesse imaginário, “a preguiça é a mãe de todos os vícios” e nele vêm inscrever-se, hoje, o nordestino preguiçoso, a criança de rua vadia (vadiagem sendo, aliás, o termo empregado para referir-se às prostitutas), o mendigo – “jovem, forte, saudável, que devia estar trabalhando em vez de vadiar”.
É ela, enfim, que força o trabalhador desempregado a sentir-se humilhado, culpado e um pária social.

Não é curioso, porém, que o desprezo pela preguiça e a extrema valorização do trabalho possam existir numa sociedade que não desconhece a maldição que recai sobre o trabalho, visto que trabalhar é castigo divino e não virtude do livre arbítrio humano?

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Parte 2

Excerto da introdução à edição brasileira do livro 'O Direito à Preguiça', de Paul Lafargue

Por MARILENA CHAUÍ

Aliás, a idéia do trabalho como desonra e degradação não é exclusiva da tradição judaico-cristã.

Essa idéia aparece em quase todos os mitos que narram a origem das sociedades humanas como efeito de um crime cuja punição será a necessidade de trabalhar para viver.
Ela também aparece nas sociedades escravistas antigas, como a grega e a romana, cujos poetas e filósofos não se cansam de proclamar o ócio um valor indispensável para a vida livre e feliz, para o exercício da nobre atividade da política, para o cultivo do espírito (pelas letras, artes e ciências) e para o cuidado com o vigor e a beleza do corpo (pela ginástica, dança e arte militar), vendo o trabalho como pena que cabe aos escravos e desonra que cai sobre homens livres pobres.
São estes últimos que, na sociedade romana, eram chamados de humiliores, os humildes ou inferiores, em contraposição aos honestiores, os homens bons porque livres, senhores da terra, da guerra e da política.

É significativo, por exemplo, que nas línguas dessas duas sociedades não exista a palavra “trabalho”.
Os vocábulos ergon (em grego) e opus (em latim), se referem às obras produzidas e não à atividade de produzi-las.
Além disso, as atividades laboriosas, socialmente desprezadas como algo vil e mesquinho, são descritas como rotineiras, repetitivas, obedientes a um conjunto de regras fixas, e a qualidade do que é produzido não é relacionada à ação de produzir, mas à avaliação feita pelo usuário do produto.
Enfim, não é demais lembrar que a palavra latina que dá origem ao nosso vocábulo “trabalho” é tripalium, instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e derivada de palus, estaca, poste onde se empalam os condenados.
E labor (em latim) significa esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga.

Não é significativo, aliás, que muitas línguas modernas derivadas do latim, ou que sofreram sua influência, recuperem a maldição divina lançada contra Eva usando a expressão “trabalho de parto”?
Donde nossa indagação:
como e quando o horror pelo trabalho transformou-se no seu contrário?
Quando as palavras honestus e honestiores deixaram de significar os homens livres e passaram a significar o negociante que paga suas dívidas?
Quando e por que se passou ao elogio do trabalho como virtude e se viu no elogio do ócio o convite ao vício, impondo-se negá-lo pelo neg-ócio?


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