terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A história de como o capitalismo abandonou a classe média pode vir a ser o fenómeno do ano

Nos EUA, as 400 pessoas mais ricas têm tanto como 150 milhões de pobres, avisa Robert Reich. O documentário Desigualdade para Todos apresentado no festival de Sundance dá-lhe voz. E ele diz que é um mundo diferente é possível.
A força do documentário está, em grande parte, na figura do economista Robert Reich
Há bastante tempo que o economista norte-americano Robert Reich vem repetindo uma mensagem: os 400 americanos mais ricos têm, em conjunto, tanto dinheiro como os 150 milhões de americanos mais pobres. Agora Reich encontrou uma plataforma ideal para que esta mensagem chegue a mais gente. O documentário – “poderoso”, chamou-lhe o The ObserverInequality for All (Desigualdade para Todos), que passou no Festival de Sundance, nos EUA, tem Reich como figura central e as suas ideias como fio condutor para contar a história da desigualdade económica que não tem parado de aumentar.
No trailer, Reich aparece a explicar que uma forma fácil de medirmos as desigualdades é através da comparação entre o salário do trabalhador americano médio e o de um americano num dos lugares de topo. Um gráfico animado começa a comparação em 1978, ano em que um trabalhador médio recebia cerca de 48 mil dólares, enquanto alguém que fizesse parte do 1% no topo receberia algo como 393 mil dólares.
O gráfico avança depois rapidamente para o ano de 2010: o trabalhador médio ganha menos do que ganhava em 1978 (33 mil dólares), enquanto o do topo ganha 1101 mil dólares. No final Reich repete: “Pensem nisto, hoje 400 pessoas têm tanta riqueza como 150 milhões, metade da população americana”. E mais: os seis herdeiros da cadeia de distribuição Walmart possuem uma fortuna maior do que a do conjunto de 33 milhões das famílias americanas mais pobres.
Carole Cadwallard, jornalista do Observer, diz que Inequality for All foi um sucesso inesperado em Sundance, ao defender a tese de que o capitalismo norte-americano abandonou a classe média, tornando os mais ricos super-ricos. A força do documentário está em grande parte na figura de Reich – aliás, o filme, dirigido por Jacob Kornbluth, segue as aulas do economista na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2012. E Reich não é um economista desconhecido. Hoje com 66 anos, foi secretário de Estado do Trabalho na Administração de Bill Clinton entre 1992 e 1996.
No início do filme, conta Cadwallard, Reich apresenta-se a uma plateia de alunos explicando o seu percurso, e recuando cada vez mais no tempo. Antes de Clinton, esteve na Administração Carter. “Mas vocês não se lembram de Carter, pois não?”. E, perante o silêncio dos alunos, prossegue: “E antes fui agente especial de Abraham Lincoln. Esses sim, foram tempos duros”.
Foi depois de ter lido Aftershock, um dos livros de Reich (o mais recente intitula-se Beyond Outrage e propõe-se explicar o que correu mal com “a nossa economia e a nossa democracia” e como resolver isso), que Kornbluth decidiu desafiá-lo a fazer um filme sobre a situação económica nos EUA. Uma parte substancial de Inequality for All foi paga com dinheiro recolhido através do site de crowd-funding Kickstarter.com, que tem sido usado por vários realizadores independentes.
O discurso de Reich teve um grande eco em Sundance e o Observer considera que o documentário pode vir a tornar-se o fenómeno do ano e “fazer pela economia o que Al Gore [com o seu An Inconvenient Truth] fez pelo ambiente”.
O que o filme de Kornbluth conta, explica Cadwallard, é a história de como a classe média foi ficando cada vez mais privada do bolo económico. Uma situação que não é benéfica para ninguém, sublinha Reich. Dado que 70% da economia depende do poder de compra desta classe média, se esta não puder comprar, a economia não pode crescer. É a mesma mensagem que outros economistas têm repetido, mas Reich fá-lo de uma forma particularmente clara, e, segundo a jornalista do Observer, divertida.
“Eu nunca tinha feito nada político antes”, afirma o realizador. “Não me considerava uma pessoa política. Mas ver o exemplo de [Reich], a forma como ele conduziu esta luta durante tantos anos foi uma inspiração para mim. Vejo isso nos estudantes dele – eles saem das aulas e querem mudar o mundo”.
Os americanos não têm vivido acima das suas posses”, defende, num dos posts do seu blogue. “O problema é que as posses deles não têm acompanhado o crescimento da economia”. O filme apresenta também essa realidade através de casos concretos, e muitos dos espectadores em Sundance confessaram ter chorado ao ouvir alguns dos testemunhos.
Mas, diz ainda Cadwallard, talvez a voz mais surpreendente do documentário seja a de Nick Hanauer, um milionário que faz parte do tal 1% de ricos, e que vem dizer que os impostos que paga são, na sua opinião, insuficientes. Hanauer diz o mesmo que Reich: o sistema não está a funcionar, porque a classe média não consegue comprar. “Eu posso guiar o melhor Audi da cidade, mas é apenas um…”.
Reich considera que um dos momentos decisivos para explicar a actual situação foi o desinvestimento feito na educação na década de 70. A partir daí, diz o economista, as oportunidades para as classes mais baixas reduziram-se, e a força de trabalho americana começou a perder terreno.
Há 30 anos que Reich repete as mesmas ideias, e, no entanto, a mensagem tem tido dificuldades em passar. "Porquê?", pergunta-lhe um jornalista do Huffington Post. “Em parte, por cinismo”, responde. “Somos cínicos em relação à política e à nossa democracia. E em parte porque não compreendemos que o mercado não pode funcionar sem regras do jogo criadas pelo Governo. Criamos o mercado através das regras que estabelecemos numa democracia, e temos poder sobre ele. Nós não trabalhamos para a economia. Deve ser a economia a trabalhar para nós.”

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