quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A IGREJA E A REINVENÇÃO DO OCIDENTE

A IGREJA E A REINVENÇÃO DO OCIDENTE


(JB) - Ao surpreender o mundo – menos alguns íntimos de sua fadiga – com a renúncia ao papado, Bento 16 revela a grande crise por que passa a Igreja Católica. Quando Gregório XII renunciou, em 1415, seu gesto unificou a instituição, então dividida sob três pontífices desde 1378. Ângelo Correr percebeu, com acuidade, que ele serviria melhor à sua própria posteridade ao servir à unidade da Igreja, e abandonar o trono papal.
          Ele não era O Papa, mas a terceira parte de um poder que, dividido, enfraquecia-se cada vez mais diante do mundo e, o que é pior, diante da História. Os dois anos de vida que lhe sobraram – morreu em 1417 - lhe devem  ter assegurado esse consolo. Ele tinha 90 anos ao renunciar – uma idade difícil de atingir naquela véspera do Renascimento – mas deu a seu gesto o claro caráter político, ao negociá-lo com o adversário mais forte, e influir na escolha – unânime, do sucessor, Martinho V – da poderosa família Colonna. Não alegou cansaço, mas, sim, responsabilidade política.
            Mais longa do que o Grande Cisma dos séculos 14 e 15, que durou quase 40 anos, é a já duradoura crise do Ocidente, de que a Igreja foi fiadora e principal organização política, desde Constantino e Ambrósio. Depois da morte de ambos,  a Igreja se proclamou herdeira do Império Romano, com base em um documento apócrifo, a  Constitutum Constantini, segundo o qual Constantino legava ao papa Silvestre I – e, assim, à Igreja – todo o poder político e todos os bens do Império. O documento, forjado no século 8, foi desmascarado por Lourenço Valla,  no século 15.
        Um dos mais destacados latinistas e gramáticos da História, Valla provou que o latim usado para redigir o documento não existia no século 4. A inteligência lógica de Ambrósio arquitetou a construção política da Igreja, conduzida na sábia combinação entre a concentração da autoridade espiritual no Vaticano, exercida mediante os bispos, e a distribuição do poder temporal entre os reis e os senhores feudais, sem esquecer o domínio direto  sobre os estados pontifícios, que garantiam a incolumidade dos papas.
       Dessa forma foi possível, em esforço de séculos, domar a anarquia, conter e assimilar os bárbaros e dar estrutura política e social à Idade Média, com a consolidação da injustiça de sempre contra os pobres e os pensadores que os defendiam, quase sempre levados às inquisições e à fogueira, como ocorreu a Giordano Bruno, no auge do Renascimento, em 1600.
        Ambrósio, nobre burocrata do Império, que pagão até ser eleito bispo de Milão, não  agiu como teólogo, que não era, mas, sim, como um dos mais hábeis estrategistas políticos da História. Coube-lhe salvar os pontos basilares da idéia do Ocidente.
          A Igreja sempre fez alianças com o poder temporal, algumas piores do que as outras, a fim de evitar a prevalência do verdadeiro Cristianismo sobre seus interesses políticos no mundo. É assim que o Vaticano de nossos dias – depois de tolerância criminosa com Hitler, sob Pio XII – mantém o acordo firmado entre Reagan e Wojtyla,  há mais de trinta anos, com o objetivo, atingido, de destruir a União Soviética e combater o socialismo. É preciso lembrar que, para o êxito da conspiração, contribuíram o traidor Gobartchev, hoje garoto propaganda dos artigos de luxo da Louis Vuitton,  e as operações  do Banco Ambrosiano (valha a coincidência), para financiar o Solidarinost, o sindicato de direita da Polônia, liderado por Lech Walesa.
         Mesmo que não a desejasse, Ratzinger seria compelido à renúncia, pelos mais eminentes membros da Cúria Romana, que se preocupam com a sanidade mental do Pontífice, cujo engajamento com os setores mais conservadores da Igreja tem comprometido o seu arbítrio. Acrescente-se o movimento, subterrâneo, mas vigoroso, da Igreja Latina – e mais perceptível no episcopado italiano – de encerrar o período de papas menos universais e empenhados em sua razão nacionalista, como o polonês  e o alemão. Isso não significa que o clero italiano recupere a Santa Sé, mas anuncia uma campanha intensa durante o conclave em favor de um candidato com as chances de Ângelo Scola, atual arcebispo de Milão, e advogado de diálogo franco e aberto com o Islã.
         Em seu pronunciamento de renúncia, o Papa associou seu gesto à crise do pensamento ocidental, no tempo de alucinantes mudanças:
“...   no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”.
        Como anotou Gregório de Tours, no enigmático século 6, o mundo de vez em quando envelhece, encasulado na dúvida, e reclama a metamorfose. A Igreja Cristã (não só a Católica) e o Ocidente, xifópagos há 16 séculos, necessitam reinventar-se. Talvez a astúcia hoje dependa de pensadores abertos, como o arcebispo de Milão, sucessor de Ambrósio no episcopado. Talvez seja o tempo de se convocar não um Concílio da Igreja Católica, mas de organizar-se  Concílio Ecumênico Universal, para salvar a idéia de um Deus comum, reunindo todas as crenças em nome da vida e da paz entre os homens de boa vontade.



→ 08/02/2013 @18:43

Estamos todos a ficar Hikikomori

Primeiro veio o aviso de Alvin Toffler, em «The Third Wave» (1980): o de­sen­vol­vi­mento da tec­no­lo­gia no sen­tido da por­ta­bi­li­dade e da sua uti­li­za­ção do­més­tica ia per­mi­tir que o tra­ba­lho pu­desse ser feito em casa e não, ne­ces­sa­ri­a­mente, num open space empresarial.
No des­pon­tar da dé­cada se­guinte, esta já era uma re­a­li­dade so­cial e eco­nó­mica. Com um com­pu­ta­dor, li­ga­ção à Internet, um en­de­reço de email e um te­le­fone fixo ou um te­le­mó­vel, mui­tos de nós fo­ram man­da­dos dos es­cri­tó­rios para os seus apartamentos.
Hikikomori
Depois, impôs-se a pre­ca­ri­e­dade como forma de la­bo­ra­ção: em vez de em­pre­gar os seus «co­la­bo­ra­do­res» (uma in­fe­liz de­sig­na­ção para re­fe­rir que o as­sa­la­ri­ado ape­nas co­la­bora, es­tando o nú­cleo das em­pre­sas nos seus ser­vi­ços ad­mi­nis­tra­ti­vos e de ges­tão), o sis­tema cor­po­ra­tivo pas­sou a en­co­men­dar ser­vi­ços externos.
Surgia o es­ta­tuto de «tra­ba­lha­dor in­de­pen­dente», pre­cá­rio, sem re­mu­ne­ra­ções men­sais fi­xas e sem di­reito a sub­sí­dio de de­sem­prego no caso de os «cli­en­tes» se mu­da­rem para a Tunísia ou para a China.
Finalmente, com a crise glo­bal dos sis­te­mas mo­ne­tá­rios e dos mer­ca­dos, veio a vul­ga­ri­za­ção do de­sem­prego. Quem tra­ba­lhava em casa, fi­cou em casa sem o que fa­zer. A sua, se ainda a con­se­gue man­ter, a casa dos pais, se nela ha­via um can­ti­nho para onde pu­desse vol­tar, ou ape­nas um quarto alu­gado na flo­resta de cimento.

Enclausuramento

Hikikomori
Este pro­cesso que já leva três dé­ca­das con­du­ziu não só a uma re­for­mu­la­ção das no­ções de mi­gra­ção e de es­paço em meio ur­bano, com a fí­sica e prá­tica de­li­mi­ta­ção dos mes­mos em ter­mos de qui­ló­me­tros e até me­tros, como tam­bém a um fe­nó­meno de enclausuramento.
Se um tu­ba­rão obri­gado a pa­rar (preso numa rede, por exem­plo) morre, no ser hu­mano a clau­sura, seja por tra­ba­lhar no pró­prio lo­cal onde dorme e come, seja por­que não tem tra­ba­lho nem di­nheiro que lhe per­mita sair além da om­breira da porta, tem sido um fac­tor de as­so­ci­a­bi­li­dade e, no li­mite, de loucura.
E de lou­cura por­que o pró­prio fe­cha­mento min­gua. Começa pelo quarto e acaba den­tro da ca­beça. São mui­tos já os que vi­vem no in­te­rior das suas men­tes, jul­gando vo­gar sem fato de as­tro­nauta em imen­sos cosmos.
Não ter es­paço equivale-se, as­sim, a ter todo o es­paço do universo…
Acresce que, a es­tes fa­to­res de pro­pi­ci­a­ção do en­co­lhi­mento hu­mano, e por­que há quem não aguente a vi­o­lên­cia e o stress de vi­ver em so­ci­e­dade e de se man­ter «útil» no en­qua­dra­mento de uma eco­no­mia re­gu­lada pela com­pe­ti­ção, são cada vez mais aque­les que de­sis­tem de mover-se mesmo po­dendo fazê-lo.
Preferem fechar-se no seu abrigo a sete cha­ves, tornando-o numa pri­são voluntária.
Se no Ocidente ainda não se re­co­nhece a ago­ra­fo­bia como uma do­ença ca­pi­ta­lista, no Japão identificou-se esta nova pa­to­lo­gia com a de­sig­na­ção Hikikomori, dando-lhe um maior sig­ni­fi­cado: a pa­la­vra é tra­du­zí­vel por Retirada, o que quer di­zer tudo.
Retirarmo-nos é, hoje, o mais ra­di­cal, o mais re­vo­lu­ci­o­ná­rio (ou tal­vez o mais re­a­ci­o­ná­rio) gesto que pode ha­ver. É um «não» ro­tundo, ainda que, na maior parte dos ca­sos, te­nha sido in­du­zido e não seja pro­pri­a­mente um ato de liberdade.
Há cada vez mais pes­soas re­ti­ra­das no mundo, Portugal in­cluído. Pessoas que ra­ra­mente saem de casa, que pro­cu­ram não distanciar-se de­ma­si­ado. Porque se sen­tem in­se­gu­ras, alvo de um pos­sí­vel ata­que ou de um de­sa­li­nha­mento en­tró­pico do nor­mal fun­ci­o­na­mento das coisas.
É claro que há vá­rios ti­pos de Hikikomori. Os Retirados mais gra­ves são aque­les que se re­cu­sam a sair da cama ou que le­vam ho­ras de­baixo do chu­veiro. Os que, ape­sar de tudo, ainda não cor­ta­ram la­ços com o ex­te­rior «ligam-se» atra­vés da World Wide Web e das cha­ma­das re­des sociais.
Mas fazem-no por­que se trata de uma abs­tra­ção. Na re­a­li­dade vir­tual, não há nin­guém nem nada do ou­tro lado. As pes­soas a quem se pos­sam di­ri­gir não têm rosto, não exis­tem. Não são ape­nas os Retirados que se en­con­tram nessa si­tu­a­ção: to­dos nós con­ver­sa­mos con­nosco mes­mos, den­tro do te­a­tro alu­ci­na­tó­rio da Rede neuronal.
Estes Hikikomori são voyeu­rís­ti­cos, vêem o que está lá fora como um peep show. As exis­tên­cias, as ro­ti­nas e até as in­ti­mi­da­des caughtbus­ted dos ou­tros, aque­les que ainda «fun­ci­o­nam», são ce­nas de um filme. Com o es­pe­ta­dor de fora, afas­tado e resguardado.
E não são re­ais mesmo que uma rés­tia de ra­zão tente con­fir­mar a sua efe­ti­vi­dade – trata-se, isso sim, de pro­je­ções ima­gi­ná­rias, re­a­li­za­das numa in­ter­zone, uma zona de transição.

Micronacionalismo e es­paço interior

Simon Sellars
Simon Sellars
A es­tes pe­que­ni­nos ter­ri­tó­rios psico-arquitectónicos chama o en­saísta Simon Sellars «mi­cro­na­ções». Cada Retirado que se bar­rica na sala-de-estar é uma nação.
Para a sua ar­gu­men­ta­ção, Sellars debruçou-se so­bre os ro­man­ces do es­cri­tor que pre­viu isto tudo an­tes que qual­quer ou­tro o fi­zesse, o que acon­te­ceu desde a dé­cada de 1960: J.G. Ballard.
Esse mesmo, o au­tor de fic­ção ci­en­tí­fica (de facto, muito mais do que desse gé­nero li­te­rá­rio) que David Cronenberg («Crash») e Steven Spielberg («Empire of the Sun») trans­pu­se­ram para o ci­nema. O me­nino in­glês de Xangai que Hirohito me­teu num campo de con­cen­tra­ção e que, já adulto, ex­pe­ri­men­ta­ria ma­jes­to­sas ere­ções ao ob­ser­var os cor­pos es­tro­pi­a­dos que emer­giam das cha­pas re­tor­ci­das de bru­tais aci­den­tes de automóvel.
Tinha mesmo de ser um fic­ci­o­nista a fazê-lo, e não um so­ció­logo, um psi­có­logo, um neu­ro­lo­gista, um eco­no­mista, um fi­ló­sofo ou um pen­sa­dor po­lí­tico. Só vê quem olha para mais longe, quem fantasia.
J.G. Ballard
J.G. Ballard
Em pro­sas como «Thirteen to Centaurus», «The Ultimate City», «Running Wild», «Rushing to Paradise», «Kingdom Come» e ou­tras tan­tas, Ballard foi cons­truindo o que Marc Augé de­sig­nou por «an­tro­po­lo­gia da pro­xi­mi­dade». Não-espaços sub­me­ti­dos à in­di­vi­du­a­li­dade solitária…
O certo é que mesmo os es­tu­di­o­sos da obra de Ballard não com­pre­en­de­ram as im­pli­ca­ções da con­di­ção Hikikomori tanto quanto o pró­prio. A chave para en­ten­der o mi­cro­na­ci­o­na­lismo bal­lar­di­ano está no seu con­ceito de «es­paço in­te­rior», um lu­gar que es­capa a to­das as ló­gi­cas que a te­o­ria da re­la­ti­vi­dade de Einstein pro­cu­rou explicar.
Uma casa fe­chada não é mais do que a an­te­câ­mara de um ca­sulo men­tal. Este mudo en­lou­que­ci­mento Cronenberg e Spielberg nunca po­de­riam fil­mar. O que há a ver só pode ser visto por dentro.
Nesse «uni­verso pa­ra­do­xal, o so­nho e a re­a­li­dade fundem-se um no ou­tro, e se cada um re­tém a sua qua­li­dade dis­tin­tiva, de al­gum modo as­sume o pa­pel do seu oposto, de modo que o ne­gro é si­mul­ta­ne­a­mente branco», es­cre­veu J.G. Ballard, o vi­si­o­ná­rio da catástrofe.

Nota fi­nal

Como não po­dia dei­xar de ser, há uma mú­sica Ballard e até uma mú­sica Hikikomori. Na área da pop e do rock encontram-na no «Closer» dos de­pres­si­vos Joy Division, em «High Rise» dos pe­dra­dís­si­mos Hawkwind,  em «Miss the Girl» dos Creatures de Siouxsie Sioux, em «Video Killed the Radio Star» e «Vermillion Sands» de The Buggles e em «Down in the Park» de Gary Numan, en­tre ou­tros ca­sos que vão de John Foxx até Madonna.
E a par­tir de 21 de Fevereiro te­re­mos mais duas obras bal­lar­di­a­nas, desta feita nos do­mí­nios do ex­pe­ri­men­ta­lismo ele­tro­a­cús­tico. São lan­ça­dos, numa edi­ção con­junta Soopa/Fundação de Serralves, o CD «Irregular Characters» de Marc Behrens e o DVD «Mundo de Cristal, Máquina da Selva», de Jonathan UIiel Saldanha. Em am­bos os ca­sos re­sul­tando de par­ti­ci­pa­ções num ci­clo de­di­cado por Serralves, em 2010, ao escritor.
Refugiem-se nos vos­sos la­res, se não têm ou­tra hi­pó­tese, mas oi­çam e ve­jam o que aqui vai. O disco do mú­sico ale­mão re­si­dente no Porto in­clui um bo­o­klet com uma sé­rie de boas his­tó­rias de sua au­to­ria, com per­so­na­gens à Ballard.

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