terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

RESENHA - SIBILIA, Paula. Redes ou paredes

SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, 222p.

A barbárie educacional e a implosão da vida escolar no capitalismo tecnocrático
RENATO NUNES BITTENCOURT*
Vivemos na civilização das incertezas existenciais, categorizada    seja    como    “pós- modernidade”,    “hipermodernidade”, “modernidade tardia”, dentre muitas outras possibilidades, por intérpretes como Bauman, Lipovetsky, Giddens etc. A definição conceitual em si não importa, justamente pela impossibilidade de definirmos com precisão a efervescência    de    tantos    signos heteróclitos    que    integram    nosso imaginário social e nossa experiência de
mundo.
Um dos sintomas da erupção desses novos tempos está na decadência do projeto moderno da educação como uma experiência de emancipação existencial do ser humano na condução de sua vida em conformidade com a civilização.
Nesse contexto, o livro de Paula Sibilia
Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão desponta como uma análise radical acerca desse problema que aflige educadores e pesquisadores comprometidos com a afirmação da dignidade do ofício do professor em uma era de crise de legitimação do ensino.
Enraizando    sua    investigação    no paradigma kantiano do Iluminismo como saída do homem do seu estado de menoridade    existencial    para    sua maioridade existencial, Paula Sibilia demonstra com precisão a outra face do projeto filosófico iluminista, atrelada ao tecnicismo e ao surgimento da sociedade disciplinar, que na esfera educacional se pauta pela promoção dos corpos dóceis dos estudantes como método para que estes se tornem no porvir cidadãos úteis aos desígnios do Estado, perpetuando assim esse sistema coercitivo.
A educação na era contemporânea encontra-se cindida por três fatores fundamentais: a crise da estrutura familiar, cada vez mais diluída em suas bases afetivas e destituída de sua legitimidade; a espetacularização das relações sociais e da própria experiência de mundo, gerando mentalidades cada vez mais dependentes de estímulos sensórios impactantes; a inserção de paradigmas comercialistas na dimensão

educacional, tornando o ensino e a cultura dispositivos regidos pela lógica da lucratividade capitalista. Essas três mazelas fazem da atividade docente um desafio árduo em sua prática cotidiana.
A    família    transfere    toda responsabilidade formadora para os professores, que se encontram no dever não apenas de transmitir os conteúdos pedagógicos aos estudantes, mas também de civilizar os mesmos. Conforme apontado por Paula Sibilia em Redes ou paredes, em decorrência do desabamento das antigas hierarquias no seio familiar e escolar, essa indistinção gradual entre os papéis de pais e filhos ou professores e aluno se torna um aspecto importante na dissolução das etapas    da    vida    organizada    pela modernidade. O estudante faz do espaço escolar uma extensão de sua casa, confundindo assim esfera pública e esfera privada.
A    excitabilidade    hipertrofiada    da juventude gera sua dispersão em todas as novidades tecnológicas, enfraquecendo a força    criadora    da    reflexão,    da contemplação,    do    silêncio    e    da paciência, de modo que toda dinâmica do pensamento é desvalorizada como enfadonha,    chata,    sem    valor. Curiosamente, estudantes que valorizam o ato de pensamento e que visam extrair dos seus professores o néctar do seu conhecimento são estigmatizados por seus colegas, como se visassem apenas obter os favores dos professores. Impera nas relações de forças escolares a pressão pela massificação dos caracteres.
A espetacularização da consciência exige    rapidez    vertiginosa    e    os professores necessitam elaborar técnicas mirabolantes para que possam concorrer com os aparelhos tecnológicos pela atenção dos alunos por alguns míseros minutos. O professor se converte em um animador de auditório para um público estudantil psicologicamente narcotizado pelos signos espetaculares. Com a sensibilidade saturada por estímulos aleatórios que sobrecarregam as possibilidades    de    pensamento consciente, mas, ao mesmo tempo, com a exigência de responder a esses estímulos com agilidade e eficácia, o estudante adentra vigorosamente nos parâmetros capitalistas do infame mote “tempo é dinheiro”. Por esse motivo a espetacularização das relações sociais é um poderoso instrumento capitalista, pois “educa” o jovem a disciplinar sua mente    agitada    aos    signos mercadológicos, que exigem pouca reflexão e muita submissão aos ditames da vida convertida em experiência de consumo e dedicação a um modelo existencial que perpetua essa terrível alienação.
O comercialismo capitalista transforma o estudante em cliente, consumidor, estabelecendo uma relação puramente monetária entre os alunos e as instituições de ensino; os professores, para que possam sobreviver nessa ditatura mercadológica, se encontram na necessidade de adequarem seus métodos, discursos e avaliações aos ditames dos alunos-clientes, pois o freguês sempre tem a razão. Quando ocorre uma reprovação, a culpa é do professor, quando o aluno não compreende o conteúdo da disciplina, a culpa é do professor, e assim sucessivamente, circunstância que evidencia o espírito de ressentimento entranhado nessa tipologia estudantil incapaz de se posicionar criticamente como o sujeito responsável por seus atos. Percebemos mais uma vez a negação da proposta filosófica iluminista    de    estabelecimento    da autonomia no caráter do estudante, abobalhado    pela    permissividade institucionalizada.

É fato que, na oferta educacional contemporânea busca-se oferecer um serviço adequado a cada perfil de público, proporcionando-lhe recursos para que cada um possa triunfar nas árduas disputas de mercado. Todos os consumidores desejam a aura da distinção, da unicidade, da singularidade, capazes de competir com os demais para que se destaquem com suas vantagens diferenciadas, em um mundo globalizado no qual impera um capitalismo cada vez mais jovial, embora também feroz. Todavia, esse destaque individual é falseador, pois o indivíduo nada mais faz do que seguir passivamente a lógica brutal do capitalismo excludente.
O comercialismo da educação gera um nivelamento grosseiro das aptidões, pois prevalece acima de tudo a busca por diplomas acadêmicos apenas por uma necessidade de inserção mercadológica e não por uma busca pessoal por progresso intelectual. Os paradigmas neoliberais penetraram nas estruturas educacionais, e não é de estranhar quando economistas se tornam gestores de ensino e determinam a condução dos procedimentos pedagógicos, convertidos em meros negócios. Casos de assédio moral e mesmo agressões contra professores que frustram as expectativas consumistas desses estudantes contaminados    pelos    paradigmas plutocráticos se tornam constantes no universo    educacional,    e    medidas espúrias são adotadas para se coibir tais
arbitrariedades. Os sindicatos de professores, apesar de exercerem grande força de resistência contra a hegemonia das corporações financeiras que controlam as instituições de ensino, lidam com um poder atrelado a projetos políticos interessados no contínuo sucateamento da estrutura educacional vigente. A escola se torna um caso de polícia sem que haja qualquer solução eficaz.
O livro de Paula Sibilia não representa a expressão do desencanto existencial perante uma conjuntura social negadora da reflexividade e do senso crítico, mas o testemunho de que existe um mal-estar cultural que urge ser sanado em nome da manutenção justamente do autêntico progresso humano na vida civilizada. Emancipado de todo infantilismo proporcionado pela permissividade familiar, pela narcotização funcionalista da espetacularização social promovida pelos meios de comunicação de massa e pela plutocracia que dignifica somente os consumidores, o jovem da era contemporânea poderia talvez assim transcender os seus próprios limites existenciais e conduzir sua vida na senda da singularidade, algo praticamente impossível nos tempos de massificação vigente. A flama da educação se transmuta grosseiramente na lama da alienação.
Recebido: 2012-12-09
Publicado: 2013-01-03

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RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/Professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA.

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