sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sobre baratas e homens

Sobre baratas e homens Estadão

‘A quem interessa perpetuar a violência?’ Filha de Rubens Paiva volta na história e pede julgamento dos que assassinaram seu pai e torturaram sua família

23 de fevereiro de 2013 | 16h 36


VERA PAIVA*
Em férias do primeiro colegial, segui para Londres, para a casa de Fernando Gasparian, industrial exilado e melhor amigo do meu pai. Uma manhã, na entrada da escola de inglês, colegas me mostravam as manchetes de jornais europeus: “Você viu?” Era fevereiro de 1971. Na capa, a notícia da prisão de meus pais e minha irmã de 15 anos. Estava escrito: “Rubens Paiva foi preso, torturado e, dizem, jogado ao mar”. Escondiam há dias o que havia acontecido... para me proteger, ou sem saber o que falar. Passei semanas entre Londres e Paris, recebendo olhares de compaixão e a solidariedade de exilados, também sem saber o que dizer a uma menina, órfã da ditadura, talvez... Mais uma. Gilberto Gil me consolou na casa de Violeta Arraes. No Brasil, temiam que eu fosse presa no aeroporto. Só voltei para a família arrasada e para a escola no final de março.
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Álbum de família
Eunice, Rubens Paiva, d. Ceci Paiva (mãe de Rubens), as filhas Eliana, Ana Lúcia, Beatriz e Marcelo
Recorro a outras cenas e perguntas, um recurso metodológico precioso na vida acadêmica, no calor da confirmação pela Comissão da Verdade de que Rubens Paiva foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi.
Passamos décadas sem saber como explicar a ausência do pai ou poder construir um luto. “Desaparecido”. Cruelmente, ficava posto em nossas mãos decidir se ele tinha morrido ou não, e quando. Foi só em 2011, quando o livro Segredo de Estado (de J. Tércio) detalhou como foi sua prisão e morte, com base em boa pesquisa jornalística e documentos agora validados pela Comissão da Verdade, e uma exposição itinerante sobre a história de Rubens Paiva foi inaugurada, que descobrimos - família e amigos vivos - como cada um viveu seu luto em anos diferentes.
Milhares de famílias tiveram e ainda têm essa experiência desde os anos de chumbo. Há muito deixamos de ser “um punhadinho de gente”, estereotipada como “subversiva”, “terrorista” ou “bandida”. Pessoas com ou sem partido, de todas as cores, etnias, religiões, 42 anos depois ainda têm seus parentes encarcerados arbitrariamente, torturados, mortos e desaparecidos “em resistência” à ação policial ou pela ação de bandidos na guerra civil que, de fato, só se generalizou quando humanos viraram baratas. Sim, baratas.
Há dez anos, a convite de Serginho Groisman, fomos debater com o cel. Erasmo Dias, que, como o delegado Fleury, assombrou minha geração. Perguntei: “Como o senhor se sente, deputado eleito e usufruindo das nossas conquistas democráticas? Como avalia sua entrada na PUC jogando bombas em mulheres grávidas, com cavalos em sala de aula?” Lutávamos pelo direito a eleições livres, por democracia, pelo nosso direito de discordar. A resposta do coronel, vaiada pela jovem plateia do programa Altas Horas: “Eu era autoridade. Tinha que fazer valer o princípio de autoridade, não importa se eram meninas comunistas ou baratas, o que fosse, tinha que reprimir”. Imagens de época exibem Erasmão na TV com a prova da “subversão terrorista”: faixas de papel-manilha rosa pintadas à mão pedindo liberdades democráticas e justiça. “Era isso a subversão?”, espantam-se os que não viveram esse tempo.
Nos anos seguintes, enquanto a democracia se reconstruía (1980-1990), adeptos da linha dura cultivaram cuidadosamente a noção de que “direitos humanos são para bandido”. Ou, como diria Paulo Maluf, “há humanos com direitos e humanos sem direitos”.
Posições mais ou menos elaboradas de como produzir um mundo melhor sempre dividiram a humanidade. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos define que as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, com direitos inalienáveis que fundamentam a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Parecia evidente a noção de dignidade no momento de sua proclamação por uma Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1948, horrorizada com a verdade e encarando a memória do nazifascismo e as cenas de Hiroshima e Nagasaki. Logo a Guerra Fria deixou clara a coexistência histórica, mais ou menos tensa, de diferentes noções de autonomia e dignidade associadas à humanidade.
Seguiram-se outras perguntas: por que não mulheridade como sinônimo de humanidade? A escravidão continuada no racismo é liberdade? A destruição da natureza e o consumismo desenfreado são sinônimos de dignidade? Heterossexualidade é a única liberdade? Boaventura Santos, propondo o uso emancipador dos direitos humanos, alerta que a humanidade que nos iguala acumula diferentes tradições e noções de dignidade: as herdadas do judaísmo, do cristianismo e outras tradições culturais, como o darma, hindu, ou a umma, da tradição islâmica, que devemos considerar no diálogo democrático.
Retomando as perguntas e revirando cenas: que noção de dignidade você gostaria de deixar como legado no Brasil para seus netos? Sintetizo, buscando o debate: um país onde se viva em paz, mais justo, onde todas as crianças possam crescer educadas e com saúde, brincar nas ruas como um dia foi possível, afirmar sua singularidade, debater livremente suas ideias, resolver pacificamente suas diferenças, ganhar e perder sustentando com dignidade a luta diária.
Provoca-lhe revolta diária a guerra civil brasileira que mata mais que na Síria e no Afeganistão? Você repudia os bandidos que, em guerra e armados (pelo Estado e não) copiam décadas de violência de Estado impunes, prendem, torturam, matam e desaparecem com crianças, jovens, adultos e velhos? Trata-se de um genocídio, se analisamos os números de mortos entre jovens negros e entre os mais pobres, indígenas ou homossexuais (às vezes basta “parecer um”). Fica horrorizado/a quando lê sobre o assassinato brutal de uma mulher corajosa, juíza carioca que investigava policiais corruptos, assassinos, torturadores? Continuo: aceitaria que seus filhos/as e netos/as fossem amigos de um torturador?
Como filha de Rubens e Eunice Paiva, respondi à jornalista na semana retrasada: se encontrasse os que torturaram minha família há 42 anos, gostaria que fossem julgados, com direito à defesa, como exige a Constituição de 1988, conhecida como a dos Direitos Humanos, essa que ajudamos a construir, pelos quais meu pai morreu e os quais minha mãe viveu defendendo.
Direito de bandidos? Baratas? Defenderei que usufruam o que negaram a meu pai e três gerações de idealistas que, com suas noções diversas de liberdade e dignidade, lotaram prisões clandestinas ou oficiais, submetidos às leis de exceção e à ação extraoficial de um Estado ditatorial e torturador.
Muitos militares e trabalhadores, empresários e fazendeiros, religiosos, muitos editores, jornalistas, professores e estudantes, médicos, juízes e advogados apoiaram abertamente a ditadura civil-militar. Muitos outros, não. Entre eles, gente nos quartéis.
Civis gostaram bastante que parte dos militares, convencidos pela ideologia de segurança nacional em tempos de Guerra Fria e cheios de ambição pessoal pelo poder, representassem seus interesses (nacionais e internacionais) sem ter que mostrar a cara, sem ter que enfrentar o debate apaixonado e democrático de hoje. Outros se arrependeram rapidamente, porque não concordavam com a redução de pessoas a baratas, apesar de temerem pelos interesses que governo eleito e movimentos sociais da época expressavam - acesso ao trabalho digno e decente, educação e terra para todos e, como defendia meu pai desde a juventude e como deputado, que o petróleo achado em território brasileiro - tão disputado nos últimos anos em tempos de pré-sal - fosse usado em benefício dos brasileiros e não de um punhado de multinacionais.
Ações ditatoriais foram “um mal necessário”, como justificou em 2010 o ministro Marco Aurélio Mello? Votos como o dele sustentaram no STF a Lei da Anistia vigente, contestada nas cortes internacionais por deixar torturadores impunes e manter vivo seu exemplo. Temia-se o quê, a memória comprometida com o “mal necessário”? Alemães convivem com a verdade dos museus preservados do Holocausto; americanos, com a memória de Hiroshima e Nagasaki; inúmeros países dão conta de julgamentos pós-comissões da verdade, que devolveram a países como Argentina, Chile, Uruguai e África do Sul o direito de ensinar às novas gerações que desse mal nunca deveríamos necessitar. Já no Brasil... A quem interessa perpetuar essa cultura da violência que divide o mundo entre homens e baratas?
“O que você faria se encontrasse os torturadores de seu pai?” Essa é uma pergunta que pode ser feita a qualquer um no Brasil de hoje. Eles estão impunes e soltos, dos dois lados da guerra civil, reproduzindo essa cultura iniciada na escravidão e perpetuada nas ditaduras à qual sempre foi possível resistir: d. Paulo Evaristo Arns, conosco pelos direitos humanos, resistia ao setor de sua Igreja que sempre teme mudanças; os empresários José Mindlin e a família Ermírio de Moraes e o banqueiro Walter M. Salles se recusaram a contribuir para a caixinha de empresários que financiava os horrores dos centros de extermínio de opositores, como mostra o documentário de Litewski, Cidadão Boilesen.
Funcionários da reitoria nos entregavam ao Dops e essa semana justificaram, inventaram, que “iam nos acompanhar”. Muitos mais foram solidários, como quando o futuro senador Romeu Tuma (lembram?) nos interrogava na Polícia Federal. Falando sobre o movimento estudantil que defendíamos e a democracia que construímos, o delegado Tuma perguntava: “Seu pai faz o quê? Onde ele está?” Diante de minha resposta de que ele saberia melhor, respondia: “Ora, está lá em Cuba com outra família...”.
Essa mentira, humilhante e torturante, foi sepultada pela Comissão da Verdade. Espero que as novas gerações pensem com sua cabeça, enfrentem a memória histórica, recusem a mentira e teorias autoritárias do “mal necessário”. No mundo que desejo construir para meus netos, militares e policiais deixariam de proteger a cultura da tortura, e a violência não ficaria impune pelas mãos de operadores de direito; os que têm algo a dizer perderiam o medo, usariam o direito ao sigilo garantido pela Comissão da Memória e da Verdade para trazer a paz e fazer o bem. Repito o que minha geração, encurralada pelo Erasmão no Viaduto do Chá em maio de 1977, gritava pacificamente: “Hoje, consente quem cala”.
*VERA PAIVA É PROFESSORA DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E FILHA DO DEPUTADO RUBENS PAIVA

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