sábado, 30 de março de 2013

Diário do Centro do Mundo

Montaigne e as vantagens da memória ruim

Paulo Nogueira 29 de março de 2013 14
Não lamente muito se você for um esquecido.
Para Montaigne, velhos com boa memória são uma companhia perigosa

Mais uma etapa da série “Conversas com Escritores Mortos”. Montaigne é o entrevistado. Ele fala das vantagens da falta de memória.

Como o senhor classifica sua memória?
Não há ninguém no mundo que fale tão pouco de memória quanto eu, até porque a minha é quase nula, e não creio que exista outra tão traiçoeira como a minha. Minhas outras características são comuns, banais, mas a falta de memória é singular, e merece a fama que tem. Platão, lembremos, dizia que a memória é uma deusa grande e poderosa.
As pessoas que o conhecem concordam com o senhor neste autojulgamento tão severo?
Quando toco neste defeito, eles não acreditam em mim, e depois me reprovam, por achar que estou fazendo pouco de mim. Mas é um erro. A experiência mostra que, ao contrário, uma memória forte raramente se faz acompanhar de discernimento. E um adendo: posso não me lembrar de muitas coisas, mas jamais me esqueço de cuidar de nada que um amigo tenha me confiado.
Como o senhor lida, interiormente, com sua desmemória?
Extraio coisas positivas disso. A maior delas é que este mal me livra de um  mal maior que poderia facilmente crescer em mim, a saber, a ambição. Este é um defeito intolerável nos homens públicos.
Alguma outra vantagem?
A falta de memória também me impede de ser tão tagarela. Muitos amigos meus, por ter uma memória que lhes traz muitas informações, começam a contar uma história com tantos detalhes desnecessários que acabam por torná-la desinteressante, mesmo quando ela é boa. A força da memória deles é maior do que o poder de discernimento. Os homens velhos que se lembram de todas as coisas passadas, mas se esquecem de quantas vezes já as repetiram, são uma companhia especialmente perigosa.
Mais algum ponto positivo em ser desmemoriado?
Esqueço facilmente as ofensas que recebi. Só me lembraria delas se fizesse como Dario, que, para não esquecer os insultos dos atenienses, pedia a um de seus assistentes, no jantar, que falasse três vezes em seus ouvidos: “Senhor, se lembre dos atenienses”. De resto, os lugares que revisito e os livros que releio sempre riem para mim com um ar fresco de novidade.
Mais alguma coisa a destacar?
Não é à toa que dizem que quem tem pouca memória não deve se atrever a mentir. Que memória é tão boa para reter todas as minúcias de uma história mentirosa contada várias vezes?
A falta de memória nos ajuda a ser mais verdadeiros, portanto. Mas não é um preço alto a pagar pela verdade?
Mentir é um vício detestável, para ser direto. Não somos homens, e nem temos outros vínculos com os outros homens, a não ser por nossa palavra. Se tivéssemos noção da gravidade desse defeito, castigaríamos os mentirosos com muito mais rigor. Vejo pais serem duros com seus filhos por pequenas artes, e ao mesmo tempo serem complacentes com as mentiras que eles contam. É um erro.

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