terça-feira, 14 de maio de 2013

A crise política do Chile - in advivo



Jeremy Spoke


Para entender a crise política do Chile

Para compreender a grave crise de representatividade existente no Chile hoje, à qual se refere qual Marco Enríquez Ominami ("MEO"), candidato da esquerda que corre por fora do "bipartidarismo" chileno, é preciso entender um pouco mais sobre funcionamento do sistema político partidário naquele país.

Em termos gerais, há dois grandes problemas sendo questionados pelos "outsiders" do sistema político: o "binomial" e a Constituição de 1980, ambos derivados da transição de "avanços na medida do possível" empreendida pela centro-esquerda durante a redemocratização. A questão central é que o sistema que existe hoje apresenta poucas mudanças em relação ao que foi legado pelo ditador Augusto Pinochet, que teve, entre suas muitas sortes, a fortuna de contar com o apoio de Jaime Guzmán, brilhante intelectual político que colaborou com o regime.

A Constituição de 1980 é, em termos estritos, uma constituição "plebiscitária" (o que já seria pior do que uma constituição propriamente democrática), mas isso é da boca para fora -- afinal, o plebiscito de sua aprovação foi uma farsa. Então demos a ela o nome certo: constituição outorgada, e nada menos do que por Pinochet. Não se levantar contra isso foi, provavelmente, o pecado original da Concertação Democrática, coalizão de centro-esquerda formada principalmente pela Democracia Cristã e o Partido Socialista (partido do Allende) que governou o país durante e depois da transição à "democracia", até a vitória da direita, com Sebastián Piñera. Imagine-se, então, a série de problemas que derivam de tocar adiante um sistema "democrático" cuja constituição não o é. (Um exemplo desses problemas é a sensação de esquecimento político vivida pelas províncias, num país onde tudo gira em torno da capital, Santiago. A Constituição foi feita por especialistas e não por atores representativos, reforçando a tendência de esquecimento do quem não está na capital. É por isso que Ominami fala em estabelecer um federalismo no Chile).

Já "sistema binomial" é o nome dado ao sistema de voto distrital atenuado criado por Pinochet e Guzmán. No Chile, as eleições de todos os cargos legislativos estão baseadas no "binomial". Em que consiste esse sistema?

A ideia básica é que para cada distrito haverá dois representantes eleitos. Os partidos políticos, se agrupados em coalizões, podem apresentar apenas dois candidatos por distrito. Os candidatos fora de coalizões, os "independentes", apresentam-se sozinhos. Diz-se que há um "bipartidarismo" no Chile porque há, na prática, duas grandes coalizões, a Concertação, que é a coalizão da centro-esquerda, e a coalizão da direita. Partidos fora dessas duas grandes coalizões, mesmo que com uma base eleitoral significativa, ficam marginalizados (é o caso, por exemplo, do Partido Comunista).

Assim, um cidadão terá quatro candidatos mais competitivos para votar em seu distrito, dois de cada grande coalizão. Mas há, ainda, um detalhe que faz toda a diferença -- a regra do "doblaje". Por essa regra, uma das (duas) coalizões só pode eleger dois representantes se a soma dos votos obtidos for superior ao dobro dos votos da outra grande coalizão. Por exemplo, se uma coalizão obtiver 35% dos votos e a outra obtiver 65%, ainda assim será como se cada uma tivesse 50%. A única semelhança com o Brasil é que também existe o fenômeno do "puxador" de votos caso de fato ocorra o "doblaje". Por exemplo, se os candidatos da coalizão A obtêm 60% e 10% dos votos e os candidatos da coalizão B obtêm 29% e 1%, o candidato com 10% dos votos derrotará o candidato com 29%. Esses são números hipotéticos; se colocarmos no jogo os percentuais obtidos pelas pequenas coalizões e pelos candidatos independentes, as cifras podem ficar ainda mais estranhas.

Esta explicação vale para a Câmara dos Deputados. Para o Senado, a única diferença é que não há distritos, mas sim regiões que expressam a divisão geográfica do Chile.

Qual é o resultado disso? Em termos gerais, tem-se um sistema representativo que não é proporcional e termina dividido entre duas grandes coalizões que têm um peso numérico muito semelhante. Novos atores políticos têm uma enorme dificuldade para entrar no sistema -- não só o binomial fecha as portas, como também as duas grandes coalizões estão cada vez mais resistentes a fazer primárias partidárias. Assim, os atores estabelecidos criam as chapas de dois candidatos a portas fechadas, sem qualquer participação das bases partidárias cada vez mais escassas. E a população acredita cada vez menos na política. É um sistema de democracia representativa criado para travar qualquer possibilidade de mudança "por dentro".

É por isso que Michelle Bachelet, candidata da Concertação, dificilmente poderá fazer alguma mudança. Mesmo que ela realmente queira (e isso não é muito provável), terá pela frente a resistência interna de uma Concertação envelhecida e corrompida, e a dificuldade de criar uma maioria significativa no Legislativo. E é também por isso que dificilmente Ominami conseguirá romper as barreiras à mudança -- afinal, se a Concertação, à qual ele pertenceu, já era fechada a novos personagens, estar fora de uma grande coalizão implica uma falta de liberdade de ação ainda maior.

Para além de Ominami, há uma série de novos personagens políticos surgindo a partir do renovado movimento estudantil. No Brasil é conhecida a Camila Vallejo, que entrou para o Partido Comunista, mas outro ator muito importante é Giorgio Jackson, que fundou a Revolução Democrática, um movimento que provavelmente é na prática o que a Marina Silva quer parecer ser com sua Rede Sustentabilidade.

No Chile, o sistema atual (que inclui a orientação neoliberal de ambas as grandes coalizões) está perdendo corações e mentes a um ritmo acelerado. Há novos políticos surgindo. As perspectivas para o curto prazo não são boas, mas no longo provavelmente haverá novidades. Se Michelle Bachelet fracassar em sua reticente agência de mudanças (e o mais provável é que isso ocorra), a Concertação começará a ruir, e a situação ficará cada vez mais instável.

Aqui no Brasil, os petistas que admiram a Concertação deveriam colocar as barbas de molho. A Concertação, e tudo o que representa, provavelmente está com os dias contados.

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