domingo, 12 de maio de 2013

Procura-se um morto Estadao


Procura-se um morto
38 anos depois, documentos mostram a luta da mãe Zuzu Angel para denunciar o assassinato do filho pela ditadura, que divulgou cartazes de ‘Procurado’ quando Stuart já não estava vivo
11 de maio de 2013 | 12h 14


Wilson Tosta / RIO

Uma mulher elegantemente trajada de negro, falando um inglês perfeito e de 50 anos presumíveis, quebrou a tranquilidade do plantão dos agentes da Polícia Civil do Rio que, em 7 de maio de 1975, cinco dias antes do Dia das Mães, cuidavam da segurança do general americano Mark Clark no Hotel Sheraton, em São Conrado, na zona sul carioca. Discreta, a visitante aproveitou o momento em que Mary Clark, mulher do militar já na reserva – comandara, na 2ª Guerra Mundial, o 5° Exército dos Estados Unidos, ao qual fora incorporada a Força Expedicionária Brasileira (FEB) –, abria a porta da suíte para lhe entregar um envelope, dizer-lhe algo em voz baixa e sair rapidamente. Um segurança do Sheraton, colaborador do Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), interceptou o pacote que, aberto, revelou-se um dossiê sobre um desaparecido político, cidadão americano, preparado por sua mãe – a mensageira que desaparecera antes que os policiais a detivessem.

Trinta e oito anos depois, documentos apreendidos pela repressão da ditadura civil-militar de 1964–85, agora guardados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), revelam um pouco mais da luta de Zuleika Angel Jones (1921–1976), estilista mineira e mãe do cidadão americano Stuart Edgar Angel Jones, para denunciar o assassinato do filho sob tortura em 1971. Zuzu, como era conhecida, traduzira para o inglês a carta em que o preso político Alex Polari de Alverga descrevia em 1972 o suplício de Tutti, como a mãe o chamava – era Henrique no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), organização de guerrilha urbana que integrava –, na Base Aérea do Galeão. Também escrevera um resumo do caso, de seus movimentos, e revelara seu medo de reconhecer a verdade – Stuart estava morto –, o que a fez ficar três anos sem procurar a carta, cuja existência conhecia. Em 1976, conseguiu entregar outro dossiê ao secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. Morreu pouco depois.

A narrativa de Polari, que Zuzu traduziu para enviar a Clark, é conhecida. Descreve as torturas contra Stuart, arrastado por um jipe com boca perto do cano de descarga do veículo, inalando gás tóxico, e apresenta aqueles que seriam seus torturadores e assassinos, chefiados pelo brigadeiro João Paulo Burnier (morto em 2000), que comandava a 3ª Zona Aérea, onde funcionava o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), na Base Aérea do Galeão. Acusado de envolvimento em outras ações de repressão (um plano para explodir o Gasômetro e responsabilizar organizações de esquerda, além do uso do Para-Sar para repressão), Burnier negava responsabilidade nos dois casos. Foi para a reserva ainda em 1971, assim como o brigadeiro Carlos Dellamora, comandante do Cisa, em episódio que, para o historiador Hélio Silva, deveu-se à má repercussão da morte de Stuart.

“Perdoe-me por levar uma tragédia tão terrível ao seu conhecimento em sua visita ao meu país”, pede Zuzu, em um dos documentos que tentou sem sucesso fazer chegar a Mark Clark. Para a mulher do militar americano, a quem se dirigira rapidamente ao entregar o dossiê (“Eu sou a senhora Zuzu Angel, esposa de um americano”), deixou um convite para visitar sua loja no Leblon, acompanhado de um lenço, “um presente de meu filho, um anjo, chamado Stuart Jones, apelidado Tutti” e explicou que anexava “alguns documentos muito importantes”, que pedia que fossem entregues ao general, o que jamais aconteceu. Um dos papéis era uma foto de Stuart, em cujo verso descrevia a “operação de martírio” contra o jovem, com 25 anos ao desaparecer, casado com Sônia Moraes Jones, morta pela repressão em 1973. “Quando meu amado filho pedia, em sua agonia, ‘água, estou morrendo’, seus torturadores e assassinos riam e debochavam dele, como fizeram com Jesus na cruz”, descreveu a mineira de Curvelo Zuzu, com base no relato que recebera de Polari. “Seu corpo nunca foi entregue a mim, sua mãe. Sinto uma grande e enorme dor.”

Separada do americano Norman Jones, fluente em inglês, estilista com contatos internacionais e dotada de coragem que com frequência descambava para a temeridade, Zuzu foi um pesadelo do regime militar brasileiro, com ações que repercutiam dentro e fora do País. Numa ocasião, chegou a tomar o microfone das aeromoças de um Boeing para anunciar que em minutos os passageiros desceriam no “Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil, país onde se torturavam e matavam jovens estudantes”. Nunca aceitou a impunidade dos responsáveis pelo martírio de Stuart, capturado em 14 de maio de 1971 na Av. 28 de Setembro, em Vila Isabel, por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e torturado até a morte na Base Aérea do Galeão. Aproveitou a dupla nacionalidade do filho (brasileira e norte-americana) para atacar a ditadura, pedindo ajuda a personalidades dos Estados Unidos, como Joan Crawford, Liza Minelli e o senador Edward Kennedy, que levou o caso ao Congresso dos Estados Unidos. Conseguiu assim divulgar um crime da ditadura brasileira bem longe dela, onde a censura imposta à imprensa pelos militares não funcionava, para irritação do governo militar.

“Em setembro de 1971, organizei um desfile de modas em Nova York. Na oportunidade, denunciei o que já sabia a respeito de meu filho, que já havia sido preso (...), torturado e provavelmente assassinado pelo governo militar brasileiro”, escreveu Zuzu em documento anexado à tradução para o inglês da carta. “A história foi publicada em muitos jornais em todo o mundo, mas não no Brasil. De certa forma acho que ficaram com medo quando souberam da reação dos parentes de Stuart nos Estados Unidos e também por eu ser muito conhecida na América como desenhista de modas, tendo amigos como Joan Crawford e outras pessoas importantes. Após isso, por volta de outubro, os militares espalharam cinicamente por todo o País cartazes de meu filho com o rótulo “PROCURADO”. Esses cartazes eram encontrados em toda parte: nos aeroportos, estações, etc. As pessoas costumavam escrever no retrato de meu filho “já foi assassinado”, “morto”, etc. Uma vez, uma atriz de cinema muito famosa, conhecida como Elke Maravilha, viu um desses cartazes no Aeroporto Santos Dumont (...). Ela ficou furiosa e rasgou (...) gritando ‘covardes, vocês já o assassinaram, como ousam, etc.’ Foi imediatamente presa e levamos uma semana para soltá-la.”

Os cartazes contra Stuart apresentavam um jovem magro, de terno e gravata. Eram assinados pela Delegacia Especializada de Roubos e Furtos da Secretaria de Segurança Pública da Guanabara, e erravam o seu sobrenome. “Procura-se. Assaltante de banco”, dizia. “STUART EDGAR ANGEL GOMES (sic) – VULGO HENRIQUE – NATURAL DA BAHIA – FILHO DE NORMAN ANGEL GOMES E DE ZULEIKA ANGEL GOMES – SEM PROFISSÃO – R. C. 1.842.264. ATENÇÃO. QUALQUER INFORMAÇÃO SOBRE ESTE INDIVÍDUO DEVERÁ SER FEITA (sic) À AUTORIDADE POLICIAL OU MILITAR MAIS PRÓXIMA.” Era uma aparente tentativa de convencer sua família de que Stuart ainda vivia: afinal, os órgãos de repressão ainda o “procuravam”. Outra iniciativa aparentemente com o mesmo objetivo foi a ação de supostas clientes – presumivelmente, agentes dos órgãos de segurança e informações dos militares ou a seu serviço, que procuravam Zuzu alegando interesse em seus vestidos e depois tentavam convencê-la de que a versão de que Stuart fora preso, torturado e assassinado era uma “grande mentira”, como a própria estilista relatou na carta a Clark. Uma dessas visitantes foi a mulher de um brigadeiro da FAB, que, segundo Zuzu, lhe disse: “Sim, um rapaz foi torturado, amarrado a um jipe e arrastado nas dependências do Cisa – Galeão, e quando terminaram já estava morto, mas não era seu filho”. Essa conversa, afirma a estilista no texto, foi gravada.

“A esta altura”, continua Zuzu, na narrativa em inglês que, ironicamente, foi traduzida para o português pela repressão, “minha mente ainda procurava resistir à cruel ideia de que meu filho estava morto. Uma esperança louca se instalou em meu coração e eu me recusava a acreditar que meu próprio filho passara por tão terrível sofrimento.” E prossegue: “Todos nós somos criados com a ideia de associar morte com cadáver, funeral, etc., e acho que por não ter visto meu filho morto minha mente se recusava a aceitá-lo.”

A recusa da estilista a aceitar a verdade comovia quem lhe era próximo. “Naturalmente, eu falava muito a respeito com amigos, parentes e advogados, implorando praticamente que me dissessem que meu filho estava vivo”, conta. “Cheguei mesmo a telefonar para minha filha em Nova York para lhe dizer das minhas pobres grandes esperanças, e me lembro que ela nada disse do outro lado da linha. As pessoas eram bondosas, não tendo coragem de me dizer que eu acabaria louca alimentando tais fantasias.”

“Nesta época”, afirma, “Alex (Polari de Alverga) estava sendo levado às auditorias diante dos tribunais militares e insistia em contar a história do assassinato de Stuart. Ali ele ouviu falar a respeito de minhas dúvidas e resolveu escrever-me a carta anexa, que entregou a sua mãe há quase três anos. Ela guardou a carta durante todo esse tempo sem a mostrar a ninguém, por motivos óbvios.”

“Eu própria sabia da existência da carta, mas nunca tive a coragem de procurar obtê-la, era covarde demais para lê-la. Mas há cerca de duas semanas, após perguntas de (nome obliterado), achei que estava na hora de tomar coragem e pedi a carta à mãe de Alex, sendo a mesma entregue a 27 de março, e eu a li!”

“A 28 de março – data da crucificação – pedi a Deus que me ajudasse dando-me forças e tranquilidade para traduzir esta carta. Fiquei em casa por três dias, só, trabalhando na tradução. Parei muitas vezes para pensar, temendo que não conseguiria fazê-lo, mas na noite de domingo terminei a carta (30 de março de 1975).”

“Sinto-me aliviada e em paz.”

Zuzu sabia que corria muitos riscos e já manifestara seus temores a quem lhe era próximo, chegando a deixar com o compositor Chico Buarque de Hollanda uma mensagem em que afirmava: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho.” Em 14 de abril de 1976, menos de um mês antes do Dia das Mães, depois das 2h, o Karmann Ghia conduzido pela estilista, que acabara de deixar uma festa, derrapou, colidiu com a mureta e capotou, matando-a na saída do Túnel Dois Irmãos – que seria rebatizado, já na democracia, Túnel Zuzu Angel. Em 1998, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, ao julgar o processo 237/96, e com base no testemunho do advogado Marcos Pires, que declarou ter visto um carro ultrapassar pela esquerda o veículo de Zuzu jogando-o para fora da via, reconheceu que o regime militar foi o responsável pelo assassinato da mãe de Stuart Angel.

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