sábado, 29 de junho de 2013

Pode ser a gota d'água: - Mauro Iasi [*]


Pode ser a gota d'água:
enfrentar a direita avançando a luta socialista
por Mauro Iasi [*]

O mundo se move sob nossos pés, as velhas formas se rompem, surgem novas e as contradições que se acumulavam explodem buscando o caminho necessário, encontrando sua forma de expressão.

A explosão social que abalou o país brotou do terreno escondido das contradições. Lá para onde se costuma exilar as contradições incômodas: a miséria, a dissidência, a alteridade, a feiúra, a violência. Germinaram no terreno do invisível, escondido e escamoteado pela neblina ideológica e o marketing cosmético que epidermicamente encobre a carne pobre da ordem capitalista com grossas camadas de justificativa hipócrita, de cinismo laudatório de uma sociabilidade moribunda.

As autoridades, os especialistas, sociólogos, politicólogos e jornalistas estão perdidos dando razão à dissertativa atribuída à Marx segundo a qual "a história só surpreende quem de história nada entende". Declamam seu espanto querendo acreditar na extrema novidade, pois só isto explicaria sua brutal ignorância. No terreno da história nada é absolutamente novo.

Se há algo que é muito conhecido para quem não se limita ao presentismo, ou foucaultianamente à aléa singular do acontecimento, é a insurreição, a explosão de massas. Caso tenham preconceitos contra nossa tradição marxista e se recusem a ler as brilhantes análises de Lênin em Os ensinamentos da insurreição de Moscou , ou de Trotski em A arte da insurreição , pode se remeter aos estudos de Freud em A psicologia de massas e análise do ego, ou a magistral análise de Sartre em A critica da razão dialética.

As massas explodem em uma dinâmica que altera profundamente o comportamento dos indivíduos isolados que pacificamente se dirigiam diariamente ao matadouro do capital, em ordem, pacificamente, saindo de suas casas humildes, pegando ônibus superlotados e precários, sendo humilhados pela polícia, vivendo de seus pequenos salários, vendo a orgia ostensiva do consumo e tendo que "subviver" com o que não tem.

Os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) estão de parabéns por uma luta que não vem de agora (lembremos Goiânia e Florianópolis) e por conseguir dar consistência a esta luta e ao confronto que os levou a dobrar a prepotência dos que afirmavam de início que a tarifa não seria rebaixada. As manifestações contra o aumento da passagem, no entanto, são apenas o desencadeador de algo muito maior. O movimento funcionou como um catalisador de um profundo descontentamento que estava soterrado pela propagando oficial.

Analisemos, então, as determinações mais profundas que se apresentam nesta explosão social.

Em primeiro lugar as manifestações expressam um descontentamento que germinava e que era alimentado pela ação que queria negá-lo, isto é, pela arrogância de um discurso oficial que insistia em afirmar que tudo ia bem: a economia estava bem, não porque garantia a produção e reprodução da vida, mas por que permitia a reprodução do capital com taxas de lucros aceitáveis, o Brasil escapara do pior da crise internacional a golpes de pesados subsídios às empresas monopolistas, a inflação estava "entorno do centro da meta", o Brasil recebia eventos esportivos e se transformava em um canteiro de obras, os trabalhadores apassivados e suas entidades amortecidas pelo transformismo e pela democracia de cooptação se rendiam ao consumo via endividamento, a governo se regozijava com índices de aceitação que pareciam sólidos.

Acontece aqui um velho e conhecido fenômeno. A vida real não combina com o discurso ideológico. A inflação em torno da meta explodia na hora das compras, de pagar o aluguel, de pagar as contas, de pegar um ônibus. As delicias do consumo voltavam na forma de dívidas impagáveis. O acesso ao ensino vira o pesadelo da falta de condições de permanência. O emprego desejado se transforma em doença ocupacional. O orgulho de receber eventos esportivos internacionais se apresenta na farra do boi de gastos enquanto a educação, a saúde, a moradia, os transportes ficam às moscas.

O estopim foi o aumento das passagens e aqui se apresenta um elemento altamente esclarecedor. Nas primeiras experiências de governos municipais do PT o enfrentamento da questão do transporte se deu através da municipalização deste serviço. Em São Paulo chegou-se a falar em tarifa zero no governo de Erundina. Em uma segunda geração de governos petistas, todas as empresas municipais foram devolvidas aos empresários que exploravam o setor (e explorar é um termo preciso). Coincidentemente os empresários do transporte se tornaram uma das principais fontes de financiamento das campanhas deste partido.

Entendendo que a explosão é perfeitamente compreensível como forma de manifestação de um profundo descontentamento, sabemos que é mais que isso. Representa, também, o esgotamento de uma forma que tem sido muito eficaz de domínio e controle político. Cultivamos um fetiche pela forma democrática como se ela em si mesmo fosse a solução enfim encontrada pela humanidade para superar um dilema histórico da ordem burguesa que a acompanha desde o nascimento e que não tem solução dentro da sociedade capitalista: o abismo entre sociedade e Estado.

A sociedade se representa através de políticos eleitos que formam as esferas decisórias, legislativas ou executivas, por meio do voto que transfere o poder para um conjunto de pessoas que supostamente expressam as diferentes posições e interesses existentes na sociedade. Abstrai-se, desta forma, o quanto os reais interesses políticos e econômicos em jogo deformam esta suposta límpida representação resultando na consagração do poder das classes dominantes, confirmando a dura descrição e Montesquieu segundo a qual "a República é uma presa; e sua força não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos", ou na ainda mais incisiva afirmação de Marx (e depois Lênin): a democracia é o direito de os explorados escolherem a cada quatro anos quem os representará e esmagará no governo.

Desta maneira é compreensível o espanto daqueles que acreditavam que estava tudo bem em uma sociedade marcada pelas contradições da forma capitalista e de sua expressão política, ignorando as profundas e conhecidas contradições que tal ordem gera inevitavelmente.

Uma contradição, no entanto, encontra sempre uma forma particular para se expressar. A forma como se expressaram as contradições descritas também é perfeitamente compreensível.

O último período político foi marcado por uma profunda despolitização dos movimentos sociais e dos movimentos reivindicativos da classe trabalhadora. Em dez anos de governo os trabalhadores não foram uma vez sequer chamados a participar ativa e independentemente da correlação de forças políticas em defesa de seus interesses e no terreno que lhe é próprio: as ruas, as praças, a cidade. Optou-se por uma governabilidade sustentada por alianças de cúpula nos limites da ordem política existente e do presidencialismo de coalizão, mantendo seus métodos, isto é, oferta de cargos, liberação de verbas e facilidades. Não é de se estranhar que em dez anos não se tenha implementado uma reforma política.

Em nenhum momento no qual uma demanda das massas trabalhadoras (reforma agrária, previdência, direitos trabalhistas, garantia de serviços públicos, etc.) que se chocava com a resistência dos setores conservadores foi resolvida chamando os trabalhadores a se manifestar e inverter a correlação de forças desfavorável às mudanças. Pelo contrário, via de regra, as soluções conservadoras foram propostas pelo governo que se pretendia popular e se pedia às massas que se calassem e dessem, como prova de sua infinita paciência, mais um voto de confiança em suas lideranças que deles se alienavam.

Quando os trabalhadores se chocavam com a orientação governista, como na última greve dos professores e dos funcionários públicos federais, são tratados com arrogância e prepotência.

Por isso, não nos espanta que a explosão social se dê da forma como se deu e traga os elementos contraditórios que expressa: despolitizada e sem direção, ainda que com alvos precisamente definidos: os governos e aquilo que representa a ordem estabelecida.

A despolitização se expressa de varias formas, mas duas delas se apresentam com mais evidentes: a violência e antipartidarismo. Comecemos pela violência.

Quanto à forma violenta que tanto espanta os ardorosos defensores da ordem temos que constatar que ela não é homogênea. Há pelo menos três vertentes da violência. Uma delas, difusa e desorganizada, é aquela que expressa a raiva e o ódio contra uma ordem que oprime, não por acaso esta se dirige contra as expressões desta ordem, seja os prédios públicos que abrigam as instituições da ordem política burguesa (sedes de governo, parlamentos, prédios do judiciário, etc.), mas também os monopólios da imprensa, da televisão, assim como os templos do consumo ostensivo. Esta manifestação é compreensível e até, em certa medida, justificada. Marx e Engels, ao analisar a situação alemã de 1850 (Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas) dizem a respeito:

Os operários não só não devem opor-se aos chamados excessos, aos atos de vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edifícios públicos que o povo só possa relembrar com ódio, não somente devem admitir tais atos , mas assumir sua direção.

Deixemos aos patéticos novos defensores da "ordem e da tranqüilidade" a defesa do fetiche do patrimônio público, uma vez que é esta "ordem" é que tem garantido às classes dominantes e seus aliados de plantão a "tranqüilidade" para saquear e depredar o verdadeiro patrimônio público.

Há uma segunda vertente da violência. Jovens das periferias, dos bairros pobres, das áreas para onde se expulsou os restos incômodos desta ordem de acumulação e concentração de riqueza, que são quotidianamente agredidos e violentados, estigmatizados, explorados e aviltados, que agora, aproveitando-se do mar revolto das manifestações expressam seu legítimo ódio contra esta sociedade hipócrita e de sua ordem de cemitérios. Sua forma violenta em saques e depredações assustam, é verdade, mas a consciência cínica de nossa época passou a assumir como normal as chacinas, a violência policial. Pseudointelectuais chegaram a justificar como normal que a policia entre nas favelas e invada casas sem mandato, prenda, torture e mate em nome da "ordem"; ou seja, a violência só é aceitável contra pobres, contra bandidos, contra marginais, mas é inadmissível contra lixeiras, pontos de ônibus, bancos e vitrines.

Há uma terceira violência e esta não é espontânea e emocional como as duas primeiras: a extrema direita. Ela, lá dos esgotos para onde foi jogada pela história recente, se sentia também ofendida e agredida, evidente que não pela ordem burguesa e capitalista que sempre defendeu, mas pelo irrespirável ar democrático que acertava as contas com nosso passado tenebroso, como a denúncia contra o golpe de 1964 e seus sujeitos, com as comissões da verdade, mas sobretudo o mal estar desta extrema direta com um regime político que permite a organização dos trabalhadores e sua expressão, mesmo nos precários limites de uma democracia representativa de cooptação. Assim como os movimentos sociais e de classe se despolitizam, a direita também. Para a extrema direita não interessa que a atual forma política permita aos monopólios seus gigantescos lucros e à burguesia sua pornográfica concentração de riquezas. A burguesia que já se serviu da truculência para garantir as condições de acumulação de capital, hoje se serve da ordem e tranquilidade democrática para os mesmos fins e neste contexto não há função clara para seus antigos cães de guarda.

Estes não suportam nos ver andando com nossas camisetas que lembram nossos mártires, nossas bandeiras que recolhem o sangue de todos que lutaram, nossas firmes convicções que nos mantêm nas lutas diárias ao lado dos trabalhadores em defesa da vida, mas com o olhar certeiro no futuro necessário e urgente que supere a ordem do capital por uma alternativa socialista. Por isso nos atacam, usam das manifestações para acertar suas contas com a esquerda, de forma organizada, intencional e, certamente, com apoio formal ou informal das aparatos de repressão.

A ação da extrema direita encontra respaldo na despolitização das massas, principalmente na expressão gritante do antipartidarismo. No entanto, neste caso temos que ter cautela ao analisar os fatos. O comportamento contra os partidos é compreensível, ainda que não justificado. Compreensível por dois motivos: as massas, graças à triste experiência petista, estão cansadas de partidos que usam as demandas populares para eleger seus vereadores, deputados e presidentes que depois voltam as costas para estas demandas para fazer seus jogos e alianças para manter em seus cargos; também, acertadamente, não podem aceitar que certos partidos pulem na frente de manifestações e movimentos para tentar dirigi-los sem a legitimidade de ter construído organicamente as lutas.

Tal atitude, portanto, compreensível, é injustificável pelo fato que ao mirar os partidos de esquerda erra pelo fato que foram os militantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais que mantiveram no pior momento da correlação de força desfavorável as lutas em torno das demandas populares, por moradia, na luta pela terra, contra a reforma da previdência, contra as privatizações, em defesa da educação e da saúde públicas, contra os gastos com os eventos esportivos, contra as remoções. E o fizeram em um contexto em que as massas estavam submetidas a um profundo apassivamento e no qual o transformismo do PT em partido da ordem isolava a esquerda e a estigmatizava. Neste sentido os partidos de esquerda como o PCB, o PSTU, o PSOL e outras organizações de esquerda, assim como os movimentos sociais e sindicatos, não precisam pedir licença a ninguém para participar de lutas e manifestações sociais, conquistaram legitimamente este direito na luta, com sua coerência e compromisso.

Para onde vão as manifestações? Alguns ingenuamente, ou de forma interesseira, acreditam que a mera existência da ação independente de massas configura em si mesma um fator positivo de transformação. Infelizmente, a história também nos traz elementos para questionar esta tese, alguns exemplos da história muito recente. Quando da derrocada do leste europeu advinda do desmonte da URSS, muitos saudaram como a possibilidade de uma revolução política que retomasse o rumo interrompido das experiências socialistas, mas o que vimos foi a restauração capitalista. Agora saúdam a chamada "primavera árabe", mas o que temos visto, e a Líbia e o Egito são exemplos paradigmáticos, é o aproveitamento dos monopólios na partilha do botim de países estratégicos isolando mais uma vez os setores populares.

O sentido e futuro das manifestações estão em disputa e temo em dizer que a esquerda está perdendo esta disputa para um sentido perigosamente de direita e conservador. Recentemente afirmei que a experiência política do último período, ao contrário do que alguns esperavam, havia produzido um desmonte na consciência de classe e se expressava em uma virada conservadora no senso comum. Este processo ficou evidente nas manifestação, para além da intenção de seus originais promotores. O produto multifacetado das contradições mescla nas manifestações elementos de bom senso e senso comum, criticas difusas às manifestações mais evidentes da sociabilidade burguesa em que estamos inseridos ao lado de reafirmações de valores próprios desta mesma ordem, o que seria natural se entendermos o processo de despolitização descrito.

Quando os adeptos do espontaneismo alardeiam a virtude de uma manifestação sem direção e que hostiliza partidos se esquecem é que se você não tem uma estratégia, não se preocupe, você faz parte da estratégia de alguém. Além da evidente eficiência dos monopólios da comunicação, o "partido da pena" nos termos de Marx, em pautar o movimento selecionando as bandeiras que interessa à ordem (luta contra a corrupção, nacionalismo, diminuição de impostos, etc.), outros elementos muito perigosos se apresentam.

Um cartaz na manifestação no Rio dizia: se o povo precisar as Forças Armadas estão prontas para ajudar. Significativamente os militantes antipartido não destruíram esta faixa, talvez porque não sabem que existe além do partido da pena o "partido da espada". Em nota dos clubes militares da marinha, exército e aeronáutica, os militares depois de afirmar que as manifestações expressam majoritariamente a indignação com o descaso das autoridades com as aspirações da sociedade e que diante dos vícios e omissões que se repetem chegou a hora de se "manifestar clamorosamente" e não aceitar "ser conduzido, resignadamente, como grupo ingênuo" dando "um basta à impostura e à impunidade". A nota dos militares termina com uma clara provocação e cita Vandré: "quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

A direita só germina e cresce no vazio deixado pela esquerda. A ilusão de um desenvolvimento capitalista capaz de resolver as demandas populares e garantir lucros aos capitalistas, sustentado por um governo de coalizão com a burguesia desarma os trabalhadores e a direita ocupa o terreno. Há um evidente cheiro de golpe no ar. A embaixadora dos EUA que estava na Nicarágua na época dos contras, na Bolívia quando da tentativa de dividir o pais, no Paraguai quando do golpe contra Lugo, chegou ao Brasil.

Ao prefaciar o livro de Leandro Konder sobre o fascismo republicado em 2009, dizia alertando para a atualidade do risco desta alternativa contra aqueles que achavam que este fenômeno estaria condenado ao passado:

Capital monopolista em crise, imperialismo, ofensiva anticomunista, criminalização dos movimentos sociais, decadência cultural, hegemonia da política pequeno-burguesa em detrimento da política revolucionária do proletariado, irracionalismo, neo-positivismo, misticismo, chauvinismos nacionalistas acompanhados ou não de racismo... Não se enganem. Só posso alertar, como certa feita o fez Marx: "esta fábula trata de ti".

A explosão de massas deu o recado: olha só meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa, qualquer desatenção, faça não... pode ser a gota d'água.
[*] Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Periferia se movimenta bbc




Lígia Teixeira *

De São Luís

'Em São Luís, a capital do Maranhão, um dos pontos mais interessantes é a participação de trabalhadores rurais e indígenas na agenda das manifestações.

No último dia 18, trabalhadores do interior do Estado bloquearam a entrada da cidade e seguiram em direção à sede maranhense do instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

A questão dos conflitos agrários no Maranhão e no Pará é bastante séria e atinge grande parte dos trabalhadores rurais dos dois Estados. Durante toda a semana, os trabalhadores rurais engrossaram as fileiras das demais manifestações ocorridas em São Luís.

Já os indígenas, aproveitaram a onda de protestos para fazer manifestações contra a falta de assistência médica nas tribos maranhenses de diversas etnias, principalmente a etnia guajajara, que concentra o maior número de indígenas no Estado. Algumas tribos chegaram a São Luís no último dia 24 para participar de atos públicos pela melhoria das condições de vida dos povos indígenas.

Alguns dos protestos são setorizados, oriundos da periferia e da zona rural e com um caráter difuso de reivindicações, geralmente relacionadas à ausência de políticas públicas voltadas para as comunidades mais pobres da cidade, sobretudo nas áreas de saúde e mobilidade urbana.


No dia 19, pelo menos 10 mil pessoas concentraram-se na chamada Esplanada dos Palácios, complexo de edificações que sediam os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo municipal e estadual situado no entorno da Praça Pedro II, no centro da cidade.

O principal alvo desse protesto foi o domínio político da família Sarney. Exaltados, jovens tentaram invadir o Palácio dos Leões, sede do governo estadual, sendo duramente reprimidos pela tropa de choque e a cavalaria da Polícia Militar.

Outra manifestação que chamou bastante atenção na cidade ocorreu no último dia 22, quando 20 mil pessoas percorreram o centro da cidade e atravessaram a Ponte José Sarney, que liga as partes nova e velha da cidade.

Durante a travessia, os manifestantes rebatizaram simbolicamente a ponte de "Ponte Acorda Maranhão". Embora tenha sido possível ver cartazes expondo reivindicações de caráter plural, as palavras de ordem e a maioria dos cartazes dos participantes do ato expuseram a profunda insatisfação com o controle político da família Sarney há 47 anos no Estado (a atual governadora é Roseana Sarney, filha do ex-presidente José Sarney e que exerce o quarto mandato à frente do governo).

O Maranhão é o Estado com a maior taxa de exclusão digital do país. Ainda hoje são raros os lares que dispõem de internet banda larga, a maioria dos pontos de acesso são garantidos por conexão via rádio. Mesmo assim, a força da organização nas redes sociais (principalmente o Facebook) foi fundamental para a mobilização e realização dos atos. De qualquer maneira, certamente a grande repercussão dos protestos no país inteiro, transmitidos pela TV, também foi essencial para motivar a participação popular.

* Lígia Teixeira, de 35 anos, é natural de São Luís e é autora do blog Marrapá, que reúne textos sobre a situação social e a política da capital maranhense.



Luana Costa e Bruno Vieira *

De Belo Horizonte

'Em Belo Horizonte, a periferia também foi para as ruas. Mas, diferentemente dos movimentos articulados no Centro, ela saiu nas suas próprias "quebradas".

A BR-040, que dá acesso a Brasília, também dá acesso a Ribeirão das Neves, cidade cujos moradores ocuparam a rodovia protestando contra a empresa de ônibus da cidade. O transporte em Neves e na sua vizinha Esmeraldas é um dos mais precários da região metropolitana de BH, com passagens que chegam a R$ 6.

A reivindicação mais evidente nas manifestações foi por melhorias no transporte na cidade. Tanto na periferia como no centro de Belo Horizonte.

Mas as causas eram várias. A comunidade Olhos D'Água, do sudoeste da cidade, ocupou as vias do Anel Rodoviário pedindo ainda melhorias na saúde e na educação.

A Dandara, uma ocupação de 40 hectares situada entre os bairros Céu Azul e Nova Pampulha, onde vivem cerca de mil famílias, compareceu em peso às manifestações, divulgando a sua luta por moradia digna.

Mas em diferentes cantos da cidade bombas de efeito moral e balas de borracha disparadas pela Polícia Militar abalaram o caráter pacífico das manifestações.

Com isso, a brutalidade policial se tornou um dos temas dominantes. Vários atos de violência contra manifestantes, em sua maioria pacíficos, foram testemunhados nos protestos.

* Bruno Vieira, 27, e Luana Costa, 28, são moradores de Belo Horizonte. Ambos atuam no coletivo Clique Conexão Periférica, grupo formado por jovens jornalistas que discutem as periferias urbanas.



Paulo Talarico *

De Osasco (SP)

''Osasco tem mais shoppings do que hospitais." É o que diziam vários cartazes vistos nas manifestações realizadas na cidade (situada na Grande São Paulo).

A falta de médicos e a qualidade dos hospitais e postos de saúde na cidade são temas de reclamações constantes na cidade. No hospital central, a espera é grande para receber um atendimento.

Temos visto o crescimento comercial do município, em contraponto com a qualidade dos serviços oferecidos.

A melhoria do sistema de transportes acabou sendo o grande mote dos manifestantes. A cidade está com o trânsito estrangulado, em função da grande circulação de veículos do município e de outras cidades, que fogem das rodovias pedagiadas que cortam Osasco.

A revolta contra a corrupção estava presente em muitos cartazes. Osasco conta com um deputado federal condenado pela Justiça, que ainda aguarda recursos, e o candidato mais votado da cidade foi considerado "ficha suja".

Por fim, um cartaz ilustrou bem o sentimento sobre a prestação de serviços na cidade: "Os problemas de Osasco não cabem todos aqui".

* Paulo Talarico é integrante do Clique Mural, blog coletivo formado por repórteres da periferia de São Paulo e hospedado na Folha.com.

éssica Moreira *

De São Paulo

A periferia, mesmo composta por diversos bairros dormitórios, nunca dormiu. A história das cidades sempre é contada do centro para as bordas. Meu bairro, Perus (na zona noroeste de São Paulo), tem buscado, na falta de aparelhos culturais oficiais, realizar eventos alternativos, como saraus, oficinas de teatro e dança.

Essa é também a realidade em outros bairros. Mas aqui uma das maiores lutas atualmente é pela abertura do antigo prédio da Fábrica de Cimento de Perus. Espaço tombado como patrimônio histórico, mas que está totalmente abandonado pelo poder público.

Há movimentos bem organizados, que, antes do estouro das grandes manifestações, já haviam ido às ruas do bairro pedindo a abertura da fábrica e reivindicando mais políticas de saúde em Perus. Perus foi um dos bairros pioneiros da cidade de São Paulo na luta em prol de uma cidade sustentável quando um movimento dos moradores extinguiu o lixão do bairro.

Se antes a luta era erguida por movimentos de base, como as Centrais Eclesiásticas de Bases e os sindicatos, agora são os grupos culturais que iniciam as reivindicações. A Quilombaque Perus, o Grupo Pandora de Teatro e até a página do Facebook "Amigos de Perus" está trazendo importantes discussões sobre melhorias no bairro e também promovendo um verdadeiro levante na região.

Há saraus de poesia de ponta a ponta. Eventos em praça pública. Casas de cultura improvisadas na garagem de casa. Grupos de teatro contando a história local, fortalecendo as raízes. Quando dizemos que a periferia nunca dormiu, é porque há anos temos lutado por mais direitos. Seja por moradia, saúde ou educação.

Há cursinhos populares que incentivam os jovens da periferia a entrarem no ensino superior. Há mutirões erguendo casas. Há mães se unindo em prol de uma boa educação. Há movimentos, também, contra a poluição.

Temos ido para as ruas mesmo sem a autorização das autoridades. Vamos levando cultura, ocupando os espaços abandonados, gritando poesia sobre trilhos de trem. Reclamamos, mas antes disso, já estamos fazendo. Se você acordou agora, todo o povo agradece. Mas nós, de fato, nunca dormimos!

* Jéssica Moreira é integrante do Clique Mural, blog coletivo formado por repórteres da periferia de São Paulo e hospedado na Folha.com.




Romário Régis

De São Gonçalo

"Na primeira passeata ocorrida na cidade, no último dia 18, tivemos mais de 10 mil pessoas nas ruas. Um momento histórico. Nunca nenhum movimento tinha colocado tanta gente nas ruas como dessa vez.

Essa manifestação tem sido pedagógica, os movimentos sociais ainda são um pouco afastados e, sem querer, todos estão começando a interagir mais para entender melhor o que está acontecendo.

Em São Gonçalo, as cobranças mais claras estão relacionadas à construção da linha 3 do Metrô, por ser uma promessa de todos os governadores nos últimos 30 anos, mas que nunca foi cumprida. A Linha 3, sairia de Niterói e iria até às instalações do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj).

Dessa forma, iria desafogar muito o trânsito, melhorando a mobilidade da cidade. Essa foi uma promessa feita durante a campanha do (governador do RJ) Sérgio Cabral.

Outra cobrança é em relação à licitação dos transportes públicos da cidade, a fim de melhorar a qualidade de serviços. Muitos bairros não possuem linhas, e moradores têm de andar de 2 a 3 quilômetros para conseguir transporte.

Meu bairro, por exemplo, é servido por quatro linhas de ônibus, mas são todas da mesma empresa. Mesmo com a farta oferta, às vezes ficamos uma hora esperando no ponto.

Havia também reivindicações mais gerais, com cartazes e manifestantes gritando slogans sobre a Fazenda Colubandê, uma residência rural do século 18 e tombada em 1940, mas que permanece abandonada há muito tempo.

Vi centenas de pautas, desde a questão dos transportes, passando pela saúde, segurança, legalização da maconha. Talvez isso seja natural, o movimento só está mobilizando por não ter um programa pré-estabelecido e, talvez, com o amadurecimento, vá desenvolver essas pautas.''

* Romário Régis é coordenador da Clique Agência Papa Goiaba, em São Gonçalo, projeto de empreendedorismo social voltado para jovens.



Raika Julie e Silvana Bahia *

Do Rio de Janeiro

Moradores das favelas cariocas estiveram presentes nas manifestações desde o começo. A jornalista Thamyra Thâmara, da favela do Complexo do Alemão e integrante do coletivo OcupaALEMÃO, conta que no início dos protestos muitos moradores das comunidades não estavam levantando bandeiras específicas.

''No primeiro momento, estávamos lá mais como observadores. Documentando e buscando entender como aquilo tudo se relacionava com a gente diretamente, talvez buscando identificação com o movimento'', explica.

Diferentes coletivos de favelas estavam presentes nas manifestações. Alguns com o intuito de documentar o movimento em fotos e vídeos.

Foi o caso dos fotógrafos populares do projeto Imagens do Povo, da escola de fotografia da Favela da Maré, e do Fórum de Juventude do Rio de Janeiro, formado por jovens de diferentes comunidades.

Por meio das redes sociais, em especial pelo Facebook, vídeos feitos por comunicadores populares eram difundidos na internet, trazendo outros olhares sobre os protestos e as demandas de quem também é afetado diretamente com as mudanças na cidade - demandas que muitas vezes não são noticiadas.

No ato do dia 20, nas favelas do Complexo do Alemão e de Manguinhos, moradores se organizaram e fretaram dois ônibus para irem ao Centro.

A juventude das favelas sentiu a necessidade de ter uma participação mais ativa no movimento. E levou muita gente, exibindo reivindicações das comunidades cariocas: "Não às remoções"; "Contra o genocídio da juventude negra"; "UPPs e seus abusos"; "Contra a resolução 013", em menção à medida que impede a realização de eventos culturais, esportivos e sociais sem a autorização prévia das autoridades locais - no caso das favelas pacificadas, do comandante da UPP.

Thamyra resume o espírito da juventude: ''Estamos numa disputa de cidade e de discurso. Se a gente não aproveitar o 'bonde' e entrar agora, vamos entrar quando? Até quando a juventude de favela vai estar fora do debate da cidade, da cidadania, dos direitos?"

"Para mim, a manifestação em si não é o mais importante. O importante é o que vem daí. O que faremos a partir daí?'', indaga a jornalista.

* Raika Julie e Silvana Bahia são integrantes do projetoClique Observatório de Favelas, uma organização que faz pesquisas, consultorias e ações públicas sobre as favelas e fenômenos urbanos.

Paulo Leminski Morte matada -biscate social clube


En la lucha de classes
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas

Paulo Leminski


Morte Matada
Publicado em 27 de junho de 2013 por Borboletas nos Olhos

Você sabe o que é morrer? Acabou vida. Acabou beijo na boca, beber cerveja, atravessar a rua, dizer palavrão, tacar o dedão na quina da mesa. Acabou rir com os amigos, abraçar gente querida, se meter em briga de bar, cutucar bicho de pé, comer de boca aberta, dormir até mais tarde. Acabou procurar emprego, reclamar do emprego, trocar de emprego, sonhar com emprego. Acabou trepar. Acabou beber café quente, jogar lixo no chão, dar um mergulho na praia, visitar a avó. Acabou batucar na caixa de fósforo, combinar balada, lavar louça, varrer chão. Acabou sentir fome, sono, medo, amor. Acabou ser biscate, falar mal de biscate, bater em biscate, defender biscate. Morrer, até prova em contrário, é isso aí: acabou. Não tem mais. Não tem mais vida. Não tem, nem vida biscate nem outra qualquer. Não tem. Acabou. Fim.

Pode-se morrer de tanta coisa: doença, acidente, tempo. Morte morrida e morte matada. E a gente, que fica, dá sentido (ou não). A gente chora. A gente sente falta. A gente dói. A gente lamenta.

E, algumas vezes, a gente ignora. Ou se indigna. E protesta. E esbraveja. E questiona. Estar na rua, no Brasil, mata. Mas mata com olho clínico, quase sempre. Mata negro. Mata pobre. Mata e a gente nem conta, nem nota, nem registra. Nem diz do jeito certo. Diz assim: morreu. Não morreu não, viu? Foi morto. Mataram.

Ontem, em Belo Horizonte, morreu um moço: Douglas Henrique Oliveira, estudante. Morreu. Mataram, digo eu. Caiu do viaduto, diz a notícia. Eu digo que foi morto pelo Estado. Hoje é estudante. Ontem, vivo e manifestando-se, talvez fosse “vândalo”, “baderneiro”. Eu leio por aí: tragédia. Eu digo: crime.

Antes (e as coisas acontecem e se atropelam e parecem demandar esquecimento, mas eu me recuso) morreram (morreram? mataram!) 12 pessoas no Conjunto de Favelas da Maré. Nas favelas as balas não são de borracha. Procuro os nomes para colocar aqui, no post, e não encontro. Ou antes, só o do sargento do BOPE, o 13º morto. Nossa sociedade é de privilégios, até ter nomeada a morte é um deles.

As justificativas são muitas e fáceis: era baderneiro, era bandido, era suspeito. A gente liga a televisão e a repórter nos esclarece: a polícia teve que reagir (coitada, a gente sente o tom pungente) contra esses vândalos (aí, sim, o tom ardente) que, que, que…ousam. Ousam questionar o status quo, a divisão de bens, ousam indignar-se e, algumas tristes vezes, ousam apenas isso: existir.

Mas o que é uma, duas, trezes, tantas vítimas, tantas mortes ante a preservação do patrimônio, não é?

Então, eu me indigno. Me revolto. Eu esbravejo. Eu choro. Minhas lágrimas e minha dor de pouco (pouco? nada) valem. Mas existem. Urge rever os valores que sustentam nossas relações sociais. É abominável que haja tanta lamentação por carros e concessionárias e móveis e tanto silêncio e indiferença à vida humana.

Ignorar essas mortes, colocá-las na conta dos equívocos, das tragédias, da única opção, é ser conivente com elas. É criminoso.

E toda essa ignomínia pode ser agravada. Hoje se vota a lei Antiterrorismo e, até eu que sou tola e Pollyana, passo os olhos e identifico a busca de criminalizar os movimentos sociais. E o que pode vir daí senão mais perdas, mais dores, ausências e mortes arbitrárias?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Comportamento de “coxinhas” paulistanos



Comportamento de “coxinhas” paulistanos é tema de análise sociológica

23/6/2013 12:28
Por Redação - de São Paulo


(co.xi.nha) Bras. Cul.

sf.
1 Coxa de galinha, que se usa ger.
na preparação de canjas e sopas,
ou como parte do frango à passarinho

sf.
2 Salgadinho empanado e frito
em forma de coxa de galinha,
com uma porção de sua carne
envoltos em massa de farinha de trigo
[F.: coxa + -inha.]•
manifestação coxinha

Manifestação coxinha

As manifestações que se proliferam Brasil afora deixaram, em São Paulo, marcas muito maiores do que a vitória do Movimento Passe Livre, que conseguiu reduzir em R$ 0,20 o preço da passagem nos transportes públicos. Incluiu mais um significado à palavra “coxinha” e ao verbo “coxiinhar” para, no futuro, ser sintetizada nos dicionários.

Por agora, no calor dos pneus em chamas, entre balas de borracha e gás de pimenta, o cientista social Leonardo Rossatto e o professor de Português Michel Montanha, de Santo André, no ABC paulista, redatores do blog Aleatório, Eventual & Livre, fazem uma “análise sociológica” do significado do termo, aplicado à definição de quem integra “um grupo social específico, que compartilha determinados valores”, segundo o texto.

Leia-o, adiante, na íntegra:

O Coxinha – uma análise sociológica

Um fenômeno se espalha com rapidez pela megalópole paulistana: os “coxinhas”. É um fenômeno grandioso, que proporciona uma infindável discussão. A relevância do mesmo já faz com que linguistas famosos se esforcem em entender a dinâmica do dialeto usado por esse grupo, inclusive.

Afinal, quem são os coxinhas, o que eles querem, como esse fenômeno se originou? O que eles são?

“Coxinha”, sociologicamente falando, é um grupo social específico, que compartilha determinados valores. Dentre eles está o individualismo exacerbado, e dezenas de coisas que derivam disso: a necessidade de diferenciação em relação ao restante da sociedade, a forte priorização da segurança em sua vida cotidiana, como elemento de “não-mistura” com o restante da sociedade, aliadas com uma forte necessidade parecer engraçado ou bom moço.

Os coxinhas, basicamente, são pessoas que querem ostentar um status superior, com códigos próprios. Até algum tempo atrás, eles não tinham essa necessidade de diferenciação. A diferenciação se dava naturalmente, com a absurda desigualdade social das metrópoles brasileiras. Hoje, com cada vez mais gente ganhando melhor e consumindo, esse grupo social busca outras formas de afirmar sua diferenciação.

Para isso, muitas vezes andam engomados, se vestem de uma maneira específica, são “politicamente corretos”, dentro de sua noção deturpada de política, e nutrem uma arrogância quase intragável, com pouquíssima tolerância a qualquer crítica.

A Origem

Existe muita controvérsia a respeito do tema. Já foram feitas reportagens para elucidar o mistério, sem sucesso, mas é hora de finalmente revelar a verdade a respeito do termo.

A origem do termo “coxinha”, como referência a esse grupo diferenciado, não tem nada de nobre. O termo é utilizado, ao menos desde a década de 80, para se referir aos policiais civis ou militares que, mal remunerados, recebiam também vales-alimentação irrisórios, também conhecidos como “vales-coxinha” (os professores também recebem, mas não herdaram o apelido). Com o tempo, a própria classe policial passou a ser designada, de forma pejorativa, como “coxinhas”. Não apenas por causa do vale, mas por conta da frequência com que muitos policiais em ronda, especialmente nas periferias das grandes cidades, acabam se alimentando em lanchonetes, com salgados ou lanches rápidos, por conta do caráter de seu serviço.

Os policiais, apesar de mal remunerados, são historicamente associados à parcela mais conservadora da sociedade, por atuarem na repressão aos crimes, frequentemente com truculência. Com o a popularização de programas policialescos como Aqui Agora, Cidade Alerta e Brasil Urgente, o adjetivo “coxinha” passou a designar também toda a parcela de cidadãos que priorizam a segurança antes de qualquer outra coisa. Para designar essa parcela que necessita de “diferenciação” e é individualista ao extremo, foi um pulo.

Expoentes

Não cabe citar socialites ou coisa do tipo. São pessoas que vivem em um mundo paralelo essas daí. Mas vou citar três criadores de tendências no universo coxinha:

1) O “engraçado”: Tiago Leifert
Um exemplo do que o Tiago Leifert trouxe pro jornalístico Globo Esporte: apostas babacas envolvendo a seleção da Argentina

Um exemplo do que o Tiago Leifert trouxe pro jornalístico Globo Esporte: apostas babacas envolvendo a seleção da Argentina

Uma característica importante do coxinha padrão é tentar ser descolado, descontraído e não levar as coisas a sério. E nisso o maior exemplo é esse figurão da foto ao lado. Filho de um diretor da Globo, cavou espaço para introduzir o jornalismo coxinha na grade de esportes da emissora. Jogos de futebol valem menos do que as piadas sem graça sobre os jogos. Metade do Globo Esporte é sempre sobre vídeo-game ou sobre a dancinha nova do Neymar, e TUDO vira entretenimento, não esporte.

Prova disso são declarações do próprio, como a declaração em que ele diz que não leva o esporte a sério, ou quando fala que o Brasil não é o país do futebol, é o país da novela. Isso revela duas características do coxinha default: ele não aceita críticas (e isso fica claro pelo número imenso de usuários bloqueados no Twitter pelo Tiago Leifert – incluindo este que vos escreve) e ele não tem conteúdo, provocando polêmicas para aparecer. Tudo partindo, obviamente, da necessidade quase patológica de diferenciação.

2) O “bom moço”: Luciano Huck

O apresentador, que revelou beldades como a Tiazinha e a Feiticeira na Band, na década de 1990, virou, na Globo, símbolo do bom-mocismo coxinha. Faz um programa repleto de “boas ações”, que, no fundo, são apenas uma afirmação de superioridade, da mesma forma que a filantropia dos Rockfellers no início do século XX. Puro marketing.

Quando você reforma um carro velho ou uma casa, além de fazer uma boa ação, você se autopromove. Capitaliza com o drama alheio mostra que, além de “bondoso”, você é diferente daquele que você está ajudando. Como preza a cartilha do bom coxinha.
Luciano Huck apresentou ao público Tiazinha e A Feiticeira

Aparência de bom moço. Só aparência. Luciano Huck apresentou ao público Tiazinha e A Feiticeira

Além disso, Luciano Huck é a representação da família bem sucedida e feliz. Casado com outra apresentadora da Globo, Angélica, forma um dos “casais felizes” da emissora. Praticamente uma cartilha de como montar uma família coxinha. “Case-se com alguém bem sucedido, tenha dois ou três filhos, e leve eles para festinhas infantis junto com outros filhos de famosos”.

Para se mostrar engajado e bom moço, Huck deu até palestra sobre sustentabilidade na Rio+20. Irônico, pra quem foi condenado por crime ambiental, em Angra dos Reis. Ele fez uma praia particular sem autorização. Diferenciação, novamente. Isolamento. Características típicas do coxinha default. Assim como “ter twitter”. Mas o twitter dele é praticamente um bot, só serve pra afagar seus amigos famosos e mandar mensagens bonitinhas.

3) A “Coxinha Política”: Soninha Francine
Soninha Francine

Soninha Francine

O terceiro e último (graças a Deus) exemplo de coxinha é a figura da imagem acima. Soninha Francine deve ser o maior caso de metamorfose política do Brasil. Até 2006 era petista convicta, mas o vírus da COXINHICE já afetava seu cérebro, a ponto dela sair na capa da Época em 2001 falando “eu fumo maconha”, provavelmente por um brilhareco.

Daí ela saiu do PT, entrou no PPS, caiu nos braços de José Serra e do PSDB paulista e se encontrou. Tenta conciliar a fama de “descolada”, adquirida nos anos como VJ da MTV, com uma postura política típica de um coxinha padrão: individualista e conservadora. E, pra variar, manifesta tais posturas via… Twitter. Emblemático foi o dia em que Metrôs BATERAM na Linha Vermelha e ela, afogada em seu individualismo, disse que não encarou nenhum problema e que o Metrô estava “sussa”. Assim como a acusação de “sabotagem” do Metrô às vésperas da eleição de 2010.

Soninha ajuda a definir o estereótipo do coxinha default. O coxinha tenta de forma desesperada parecer um cara legal, descolado e antenado com os problemas do mundo. Mas não consegue disfarçar seu individualismo e sua necessidade de diferenciação. Não consegue disfarçar seu rancor quando os outros passam a ter as mesmas oportunidades e desfrutar dos mesmos serviços que ele.

Conclusão

O coxinha é um fenômeno sociológico disseminado em vários lugares, mas, por enquanto, só “assumido” em São Paulo (em outras cidades, os coxinhas ainda devem ter outros nomes). Não por acaso, tendo em vista que São Paulo é um dos ambientes mais individualistas do Brasil.

São Paulo é uma das cidades mais segregadas do país. É uma cidade de grande adensamento no Centro, com as regiões ricas isoladas da periferia. A exclusão é uma opção dos mais ricos. Eles não querem se misturar com o restante da população. E, nos últimos anos, isso ficou mais difícil: não dá mais pra excluir meramente pelo poder econômico. Daí, é necessário expor um personagem, torná-lo um padrão, pra disseminar essa mentalidade individualista e conservadora: é aí que surge o coxinha.

E isso é bom. Porque o coxinha, hoje, é exposto ao ridículo pelo restante da sociedade. Até algum tempo atrás, ele era apenas uma personagem latente. Ele não aparecia, portanto, não podia ser criticado ou ridicularizado. No final, o surgimento dos coxinhas só reflete a mudança do nosso perfil social. E, por incrível que pareça, o amadurecimento de nossa sociedade.

sábado, 22 de junho de 2013

Mau senso - Pedro Rocha de Oliveira


Mau senso
Enquanto se condena a violência policial no centro da cidade, aceita-se a brutalidade na periferia

Pedro Rocha de Oliveira - O Estado de S. Paulo

Depois de quase duas décadas de marasmo, em meio à crise econômica, à onda internacional de protestos e às truculências simbólicas e concretas necessárias para adequar o País aos jogos internacionais, a juventude brasileira começou a se mexer. Nesse contexto, o descontentamento usual está produzindo forças não usuais, e essas forças estão se exprimindo. O tamanho delas surpreende, dá gosto de ver. A apreensão do sentido desse movimento enquanto ele está começando é, obviamente, muito difícil. Não obstante, vale a pena dialogar com alguns dos temas recorrentes que vêm povoando aquela apreensão - em especial, o tema da violência.

Ao refletir sobre os protestos no Brasil e no mundo, a "opinião pública" internacionalmente homogeneizada trabalha muito com a oposição "protesto pacífico x protesto violento". Fala-se em excessos por parte tanto da polícia quanto dos manifestantes. Joga-se com um dos mais primitivos e arraigados princípios da moralidade, a ideia de troca justa: manifestantes violentos merecem repressão violenta da polícia, e a polícia às vezes ganha um puxão de orelha se bate na cara em vez de bater nas costas. Trata-se de abalos na comensurabilidade entre quantidades de violência, mas o bom senso moral emprega a equivalência para resolver qualquer problema ético ou político. Fala-se de quantidades de violência como se diz que os lucros das empresas de ônibus talvez sejam grandes demais, ou que a corrupção alcançou níveis intoleráveis (a bizarra disputa discursiva que vem sendo empreendida para atribuir sentido aos protestos passa muito por aí).

Implicitamente, esse bom senso moral projeta a imagem clássica, batida e facilmente reconhecível de uma sociedade definida pelos atributos do equilíbrio e da ordem. Tais elementos teimam em marcar a consciência social na sociedade burguesa mesmo no período tardio em que já não a descrevem (se é que já o fizeram). Hoje, a violência é uma realidade presente, inconteste, inevitável, da qual ninguém pode realmente se manter higienicamente afastado, que ao mesmo tempo foi cientificamente desenvolvida pelo Estado e pelas corporações até chegar a níveis incomensuráveis com as capacidades dos meros mortais. Os lucros são todos indevidos, porque dependem de exclusão socioeconômica brutal, submissão da vida a procedimentos empresariais e relativização da viabilidade ecológica. A reivindicação política não pode mais apelar à consciência moral dos governantes porque as pressões do processo econômico transformaram o governo na aplicação de uma técnica administrativa independente de valores. O direito só pode ser encarado pelos governados com o mesmo cinismo arbitrário e instrumental com que é institucionalmente mantido. E todos esses elementos, que às vezes são associados à precariedade brasileira (turca, egípcia, etc.), não podem ser realmente vistos como exceção subcivilizada, mas ou bem como exemplo - uma "vanguarda do atraso" global - ou bem como herança da sinistra ciência da dominação que o Ocidente vem desenvolvendo ciosamente desde o advento da Gestapo e rende frutos, nos países centrais, sob a forma das execuções a distância pelos drones da CIA, ou dos policiais antiprotesto britânicos especializados em quebrar dedões.

No entanto, na hora de pensar os eventos em que a tessitura social fica amassada, se não rasgada, a consciência social não só rejeita os amassos do real como mau gosto, mas torna-se insensível a eles. Consequentemente, parte significativa da classe média que agora se sente empurrada para as ruas, ou que assiste a tudo com interesse, apreende com repugnância o horror das incomuns violências perpetradas contras os brancos nas manifestações - violências hediondas, e inéditas entre nós desde a ditadura -, mas não está preparada para reconhecer a violência sistemática que marca a experiência social dos pobres de outras cores e sustenta o que ela chama de vida normal.

É assim que, no Rio, o corte étnico-social dos 100 mil manifestantes do dia 17 de junho não destoou muito daquele que resulta da segregação usual que mantém os pobres longe do centro da cidade depois do horário do expediente. Nessa cidade, o controle territorial armado é ferramenta de gestão pública. Recentemente, o Jacarezinho - favela da Zona Norte do Rio e um dos menores IDHs da cidade - se levantou contra a UPP local. O significado desse evento não é pequeno, mas a "opinião pública" lhe deu pouca atenção. Nas cenas registradas do ocorrido por Patrick Granja e Guilherme Chalita do blog Nova Democracia, não há nenhum lugar para o juízo moralizante que domina a apreensão dos eventos de violência policial recentes. Ali, como tem ocorrido em tantas favelas submetidas ao regime de ocupação policial-militar, moradores reagiram à violência da abordagem e revista incessante, os agentes da segurança pública revidaram e acabaram encurralados em um beco, atirando contra uma multidão enraivecida e matando um garoto que comia num bar e ficou estendido no chão no meio de uma poça de sangue com o cachorro-quente do lado da mão. Consultado sobre o ocorrido, o diagnóstico do comandante da UPP, conforme matéria do jornal O Dia de abril, foi que a população tem que se acostumar com as abordagens constantes da polícia, que está ali para aquilo mesmo. Ou seja: no Jacarezinho, a violência policial é onipresente e normal.

Trata-se de lançar luz sobre algo óbvio: quando o Poder Executivo bate, tortura, mata durante o processo de "pacificação" ou "combate ao crime organizado" nas favelas e periferias - e ele faz isso sistematicamente -, a maior parte da grande mídia, a opinião pública e o bom senso moral passam batido, descontando a pimenta nos olhos dos outros como efeito colateral necessário para manter a ordem que tanto preza. É assim que, falando da atuação policial, o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, recentemente aplaudido pela população de bem ao passear em público, disse à imprensa que "mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é o caminho". Os teimosos de sempre postaram algo na internet, mas ninguém foi para as ruas, embora os princípios formais que regem a democracia ocidental estivessem em jogo nessa fala.

Ao contrário do que acontece com a violência policial exercida no centro, e contra gente branca, a opinião pública está preparada para encarar a repressão, acossamento, segregação, criminalização e brutalização sistemática dos pobres no morro e na periferia como coisa tão natural quanto a pobreza, o que já é uma violência danada. Esse bom senso moral saudou as invasões policiais como o "restabelecimento do Estado de Direito". Mas, se na favela ocupada a violência não é exceção, mas regra, tal violência não pode ser separada de um funcionamento social normal, de modo que o Estado de Direito foi para as cucuias. Se a normalidade é violenta, não há sustentação para a oposição entre violência devida e indevida. Sob ocupação policial constante, não há instituições justas e injustas, só a opressão explícita.

Isso significa que os princípios da equivalência e do bom senso moral não regem a experiência social dos pobres. O processo histórico do capitalismo fez com que o clamor pela justiça tradicional coincida com as fronteiras da segregação socioeconômica e espacial das cidades contemporâneas. O que não se deixa segregar é a violência: a polícia, dando tiro na cara dos brancos, promove um tipo de "igualdade e fraternidade", bem adequado à forma social contemporânea. Ela "democraticamente" aplica no centro a mesma truculência que foi treinada para usar há décadas na periferia e no morro, com consequências que vão desde os sigilosos altos índices de suicídio entre policiais até a costumeira invulnerabilidade legal que os protege de responderem pelos "excessos" calculados que lhes são exigidos pelos capos do Executivo.

Assim, a violência policial nos eventos de manifestação popular da classe média pode ironicamente devolver à experiência social o sentido de totalidade que o Estado policialesco trabalha para dissolver mantendo os pobres em seu devido lugar. Mas isso só vai acontecer se a apreensão desses eventos romper com os limites do campo de visão da classe média. Imaginemos o que aconteceria se, num belo (belíssimo) dia, milhares de pretos descessem dos morros cariocas para, também, tomar conta da Av. Rio Branco. Nenhuma medida de truculência policial seria, então, capaz de comover a já seletiva opinião pública, que hoje não hesita em acusar de colaboração com o "tráfico de drogas" os pobres que se levantam contra as UPPs.

Aliás, vale notar que, dada a existência das UPPs, dificilmente a marcha da massa favelada morro abaixo poderia ser empreendida por manifestantes "pacíficos"...

PEDRO ROCHA DE OLIVEIRA É PROFESSOR ADJUNTO DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIRIO E COORGANIZADOR DO LIVRO ATÉ O ÚLTIMO HOMEM: VISÕES CARIOCAS SOBRE A ADMINISTRAÇÃO ARMADA DA VIDA SOCIAL (BOITEMPO EDITORIAL)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A maneira como vivemos hoje - in http://umanovacultura.blogspot.com.br


A maneira como vivemos hoje
Esta é a tradução de uma palestra proferida pelo historiador americano Morris Berman a respeito do seu novo livro, Why America Failed (Por que a América falhou), lançado em 2011. O título original da palestra é The way we live today, e a transcrição foi cedida pelo próprio Berman para tradução. O objetivo de disponibilizá-la aqui é divulgar as ideias deste autor que, apesar de ser considerado um dos mais incisivos críticos da cultura americana, não foi traduzido no Brasil até agora. Berman se mudou para o México em 2006. Talvez seja mais conhecido por um livro chamado The Reenchantment of the World (O reencantamento do mundo), onde defende uma perspectiva ecológica baseada numa leitura crítica da história da ciência. Sua tese sobre os EUA talvez possa ser estendida à civilização como um todo.


A maneira como vivemos hoje
Por Morris Berman

Apesar da grande pressão para se conformar nos Estados Unidos, para comemorar os EUA como o melhor sistema do mundo, a nação não tem falta de críticos. As duas últimas décadas têm visto inúmeros trabalhos que criticam a política externa dos EUA, a política doméstica dos EUA (em especial, a política econômica), o sistema educacional norte-americano, o sistema judicial, os militares, os meios de comunicação, a influência das corporações sobre a vida americana, e assim por diante. A maioria deles é muito astuta, e eu aprendi muito com a leitura destes estudos. Mas duas coisas em particular estão em falta, na minha opinião, e são coisas que dificilmente aparecem para os olhos do público, em parte porque os americanos não são treinados para pensar de uma forma holística ou sintética, e em parte porque o tipo de análise que eu tenho em mente é difícil de ouvir para os americanos. A primeira coisa que falta nessas obras é uma integração dos diversos fatores que estão destroçando o país. Esses estudos tendem a ser sobre uma instituição específica, como se a instituição em análise existisse em uma espécie de vácuo, e poderia realmente ser entendida separada de outras instituições. A segunda coisa que eu acho que falta é uma relação com a cultura em geral, com os valores e comportamentos que os americanos manifestam diariamente. Como resultado, essas críticas são, enfim, superficiais; elas realmente não vão à raiz do problema, e este evitamento lhes permite ser otimistas, o que de fato os coloca no mainstream americano. Os autores muitas vezes concluem seus estudos com recomendações práticas de como as disfunções institucionais particulares que eles identificaram podem ser corrigidas. Eles não são, como resultado, uma grande ameaça. Geralmente é uma análise mecânica com uma solução mecânica. Se os autores percebessem que estes problemas não existem no vácuo, mas estão relacionados com todos os outros problemas e estão enraizados na natureza da cultura americana em si, no seu "DNA", por assim dizer, o prognóstico não seria tão belo. Porque se tornaria claro que simplesmente não há uma saída; que mudar as coisas de lugar não é realmente uma opção neste momento.

Para tomar apenas dois exemplos: Michael Moore e Noam Chomsky. Eu os admiro muito, eles fizeram muito para elevar a consciência nos Estados Unidos, para mostrar que tanto a política externa e interna, como atualmente buscadas são becos sem saída, ou pior. No entanto, ambos acreditam que o problema vem de cima, do Pentágono e das corporações. O que é verdade em parte, com certeza. O problema é que isto repousa sobre uma teoria da falsa consciência: ou seja, a crença de que essas instituições têm vendado os olhos do cidadão médio americano, que é, em última análise, racional e bem-intencionado. Por isso, a solução é a educação: tire a venda dos olhos, e os cidadãos vão espontaneamente despertar, e comprometer-se a algum tipo de visão socialista, populista ou democrática. Mas e se descobrirmos que a venda é os olhos? Que o assim chamado cidadão médio realmente quer, como Janis Joplin celebremente colocou, um Mercedes-Benz, e não muito mais? Que ele ou ela é grata às empresas por nos fornecer oceanos de bens de consumo, e ao Pentágono, por nos proteger desses horríveis Ay-rabs[i] à espreita no Oriente Médio? Então as possibilidades de mudança fundamental parecem ser bem pequenas, pois o que seria necessário é um conjunto de instituições muito diferentes, e um tipo muito diferente de cultura. Eu acho que todos nós concordamos que não há muita chance disso acontecer. A América é, afinal, o que é.

Observando a cena crítica, então, eu encontro muito poucos escritores que veem as coisas de forma sintética, isto é, como um todo integrado, e que ainda relacionem isto com a natureza da cultura americana em si. Mas há alguns, e os títulos de seus livros os entrega: As origens puritanas do self americano, por Sacvan Bercovitch; Guerra é uma força que nos dá significado, Chris Hedges, o mito da diplomacia norte-americana, de Walter Hixson. Alguns historiadores eminentes também vêm à mente: C. Vann Woodward, por exemplo, ou William Appleman Williams, ou David Potter, ou Lears Jackson. Todos esses pensadores são radicais, no sentido de ir à raiz das coisas. Bercovitch, um canadense que ensinou Estudos americanos durante várias décadas em Harvard, argumenta que já a partir de 1630, os colonos estavam imbuídos da ideia de que eles estavam estabelecendo uma nova nação, sob a direção específica da Providência, e reencenando o drama do Êxodo, no Antigo Testamento. Assim, na travessia do Atlântico (= Rio Jordão), eles estavam entrando no Novo Mundo (= Canaã, que emana leite e mel); rejeitando a decadência da Inglaterra e da Europa em geral (= Antigo Egito), e estabelecendo uma nova ordem, Nova Jerusalém, e que tudo isso estava de acordo com a vontade de Deus. O historiador Walter Hixson afirma que a identidade americana originalmente se uniu em torno da ideia do Outro, quem quer que fosse, como sendo selvagem, e, portanto, que a nossa identidade sempre foi baseada na guerra, nós realmente nunca negociamos nada com ninguém, como outras nações descobriram (geralmente é tarde demais). O jornalista Chris Hedges amplifica essa noção, argumentando que a guerra deu aos americanos uma razão de ser, um sentido para suas vidas. Tudo isso, para mim, é muito mais sofisticado do que alguma suposta teoria da falsa consciência, uma crença de que os americanos são fundamentalmente bem-intencionados e racionais. Em vez disso, ele argumenta essencialmente que somos, e temos sido desde nossos primeiros dias, irremediavelmente neuróticos ou coisa pior, e que a crença de que podemos seguir um caminho realmente diferente nesta fase do jogo é ilusória, exigindo o que seria arrancar a psique americana de suas próprias raízes.

Em todo caso, eu gostaria de pensar que eu caio nesta última categoria de historiador, só porque eu acho que é esta versão da história americana que é fiel à realidade. Há uma série de temas que poderíamos discutir, neste ponto, que eu tenho examinado na minha trilogia sobre o império americano, da qual o terceiro volume, Por que a América falhou, acabou de chegar. Já que você não quer que eu fique falando por 12 ou 14 horas, deixe-me elaborar apenas uma única ideia, uma que eu apresentei na minha coleção de ensaios, Uma questão de valores, publicado no ano passado. Em um ensaio intitulado "Localizar o Inimigo", eu peguei emprestado um conceito do filósofo alemão Hegel, o de "identidade negativa". Por “negativa”, Hegel não quis dizer ruim, mas reativa. A identidade negativa, disse Hegel, é aquela que é formada em oposição a algo ou alguém. Ela permite que você desenvolva fronteiras muito fortes do ego, sempre avançando contra o seu inimigo, mas uma vez que é formada através de oposição, não tem conteúdo real. Como resultado, parece forte, mas na verdade é fraca, porque a sua auto-definição é inteiramente relacional. O que um mestre seria, pergunta Hegel, sem um escravo? Tire o escravo, e o mestre não teria nada pelo que se definir.

O que defendo é que este conceito de identidade negativa aplica-se particularmente bem à América, à história do continente americano. Oposição, sob qualquer forma, proveu os colonos com uma narrativa orientadora que lhes permitiu dar sentido às suas vidas. E já que, como facilmente demonstra Bercovitch, esta foi uma narrativa religiosa, não demorou muito para transformá-la num maniqueísmo, em que o inimigo, fosse quem fosse, era o mais sombrio dos sombrios. O alvo deste ódio hipócrita se metamorfoseou ao longo do tempo, mas a forma, que é a oposição maniqueísta, manteve-se a mesma. Assim, os nativos americanos foram rapidamente vistos como pouco mais do que selvagens, um obstáculo para a "civilização", e tratados como tal. Assim, em cada Ação de Graças, os americanos se sentam, cavam um peru, e comemoram o genocídio e a quase extinção de todo um povo indígena. O próximo alvo foi o britânico, que surgiu na Revolução Americana, embora este já estivesse presente quando os peregrinos partiram para a América, a partir de 1620. Grã-Bretanha estava decadente e corrupta, na visão dos colonos, hierárquica e orgânica, enquanto nós, cidadãos do futuro Estados Unidos, éramos essencialmente não-britânicos, não-europeus, mas republicanos, ou seja, antimonárquicos. O terror e brutalidade que caiu sobre os legalistas, os norte-americanos que não seguiram essa agenda simplista em preto-e-branco, quase nunca é discutido nos livros de história americana, mas foi registrada, apesar de tudo: a intimidação constante, humilhação[ii], confisca ou queima de propriedade, sendo expulsos de suas casas, e muitas vezes assassinados como "traidores". (Veja, por exemplo, o recente estudo da Maya Jasanoff, Exilados da liberdade. Há muito poucos livros americanos nesse gênero, porque violam o mito da inocência americana, de ideais nobres).

Movendo-nos a diante, chegamos à oposição com o México, que envolveu provocar uma guerra falsa e depois roubar mais da metade do país. Como no caso dos índios americanos, era conveniente considerar o povo mexicano como ignorante e pouco desenvolvido, "selvagens" de algum tipo, sem a energia empreendedora do capitalismo dos EUA, um infeliz estereótipo que persiste em certo ponto até os dias de hoje. Como os nativos americanos, os mexicanos eram vistos como ficando no caminho do "progresso", do Destino Manifesto americano (mais uma vez, ordenado por Deus). Na verdade, o governo mexicano estava bem ciente de com quem estava lidando. No final de 1820, uma comissão mexicana escreveu que os americanos eram um "povo ambicioso sempre pronto para invadir seus vizinhos, sem uma centelha de boa fé". Como Robert Kagan escreve em Dangerous Nation, praticamente todos viam os EUA desta forma, incluindo o espanhol, o francês, os russos e os britânicos. Diplomatas franceses chamaram a população americana de "guerreira" e "agitada".

Pouco depois, a mesma estrutura que tinha sido usada para caracterizar os nativos americanos e mexicanos foi aplicada pelo Norte para o Sul-Americano: uma preguiçosa sociedade sentada no caminho do progresso. Como eu discuto em Por que a América falhou, não foi a oposição do Norte à escravidão que desencadeou a Guerra Civil, embora, mais tarde, isso veio a desempenhar um papel importante como um tema unificador, um grito de guerra. Eu não estou, é claro, justificando a escravidão, e poderia muito bem ser argumentado que sem a Guerra a escravidão teria continuado por várias décadas, embora alguns historiadores discordem dessa avaliação. Mas o conflito mais fundamental foi um choque de culturas, a maneira lenta e calma do Sul, em oposição à inquieta expansão econômica do Norte. Ambos os lados considerando o outro como o diabo encarnado, o resultado foi a perda de 625 mil vidas e uma destruição maciça do Sul, sintetizado pela marcha de Sherman ao mar, que foi inacreditavelmente violenta. Essas cicatrizes ainda existem, é claro. Para o Sul, a guerra nunca acabou realmente, e o ressentimento é muito profundo.

Os alemães foram os próximos, embora esta oposição pareça perfeitamente justificada, e depois vieram os comunistas “sem deus”. A conversão dos russos de aliados para inimigos ocorreu quase do dia para a noite, e não é difícil perceber por que: com os alemães fora do jogo, tinha de haver um inimigo no seu lugar para preencher o vácuo resultante. E, embora a URSS fosse repressiva ao extremo, ela não tinha, como o diplomata americano George Kennan argumentou atrasadamente, que ser tratada como o inimigo final, porque o seu objetivo real estava em garantir suas próprias fronteiras. Arquivos da KGB abertos após a queda da União Soviética revelaram que o medo real da Rússia não era dos Estados Unidos, mas de uma Alemanha rearmada. Mas não houve nenhuma tentativa de negociar coisa alguma com a Rússia, como Stalin apontou já em 1946, para os americanos, "negociação" na verdade queria dizer "capitulação". Em qualquer caso, a Guerra Fria manteve os EUA ocupados por décadas, e assim, o assim chamado perímetro de defesa, que sustentava que qualquer perturbação no mundo era motivo para ação militar dos EUA, levou aos desastres do Irã, Guatemala, Vietnã, Chile, e assim por diante.

Naturalmente, a estrutura psicológica da identidade negativa levou a uma crise quando a União Soviética entrou em colapso: de repente, não tínhamos ninguém contra quem nos definir. A Guerra do Golfo de 1991 ajudou a preencher a lacuna, por um tempo, mas os anos de Clinton foram em grande parte sem sentido: sem um inimigo, não tínhamos ideia de quem éramos, e enchemos o espaço com O.J. Simpson e Monica Lewinsky. Finalmente, o mundo islâmico nos fez o maior favor imaginável: ele nos atacou. Da noite para o dia, o terrorismo substituiu o comunismo como o chavão crucial, e Bush Jr., como Reagan na caracterização da União Soviética, não hesitou em ver a disputa como uma guerra cósmica entre o bem e o mal. Não houve discussão possível sobre a política externa americana no Oriente Médio como tendo desempenhado um papel nestes eventos; tal sugestão era equivalente à traição. Não, os nossos inimigos eram maus ou insanos, ou de preferência ambos, e fim da história. Até o dia de hoje, sob a administração Obama, o dinheiro dos impostos americanos pagam oficinas para ensinar a polícia e os militares de que o Islã é uma religião do mal, que quer destruir a América, e que deve, portanto, ser destruída em primeiro lugar. (Chris Hedges postou um artigo no truthdig.com em 9 de maio de 2011, descrevendo a natureza desses programas em detalhes). Mais uma vez, é a civilização contra os selvagens.

George Kennan tentou advertir o governo norte-americano que fazer um monólito do comunismo foi um engano grosseiro, e que havia grandes conflitos entre a Rússia e a China, por exemplo. Mas como o maniqueísmo requer figuras de papelão, os presidentes americanos desde Truman não prestaram atenção no seu conselho. Algo semelhante agora existe em relação ao Islã. Acontece que apenas cerca de 10% dos muçulmanos americanos são realmente religiosos, pois para a maioria deles o Islã é mais uma coisa social do que qualquer outra coisa, e mesmo assim, muito poucos muçulmanos religiosos são jihadistas. Mas quando a sua identidade é negativa, no sentido hegeliano, este tipo de nuance tem de ser mantida fora de sua consciência. Por exemplo, os americanos tendem a considerar o Paquistão como um lugar sombrio e terrível, como o país que escondia Osama bin Laden das tropas americanas, ou que abriga a Al-Qaeda (daí os ataques por aviões não tripulados nossos no país, que em sua maioria mata civis), ou que está em conluio com os talibãs. O que os americanos diriam se lessem nos jornais, como eu fiz em junho passado no Guardian de Londres, que um programa de TV muito popular no Paquistão é o de um comediante estilo Jon Stewart, que ridiculariza o governo e mostra canções como "Burka Woman", que ridiculariza o fundamentalismo muçulmano? (A música é baseada em "Pretty Woman" de Roy Orbison, e diz: "Mulher Burka / Andando pela rua / Burka Woman / Com seus pés sensuais..."). É claro, nada disso foi pego pela imprensa americana, porque enfraqueceria a nossa capacidade de pintar o inimigo totalmente de preto, o que potencialmente levaria a um abrandamento das fronteiras do nosso ego, e a um questionamento posterior de quem nós somos, além de uma nação em oposição a algo, e isso francamente nos assusta, porque, então, o jogo acabaria.

Marshall McLuhan, o teórico da comunicação canadense, uma vez afirmou: "Todas as formas de violência são buscas por identidade". Mais recentemente, David Shulman, que é professor de humanidades na Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveu: "Não há nada mais precioso do que um inimigo, especialmente um que você tenha em grande parte criado por seus próprios atos e que desempenha um papel necessário no drama interior de sua alma". O que é a alma americana? Será que sequer temos uma? O que, além da oposição, a define? Este vazio no centro torna a nossa busca por identidade especialmente aguda, e, portanto, a nossa política especialmente violenta. A política é sempre de destruição, parece-me, ou de "choque e pavor". Na plenitude do tempo, nós é que provamos sermos os selvagens, e tudo isso sem muita consciência ou reflexão. É interessante que o tema dos romances de Paul Auster é que a sociedade americana é incoerente, que carece de uma verdadeira identidade e não é nada mais do que uma sala de espelhos. Ele está dizendo isso há décadas, e em geral, os americanos não sabem quem é Paul Auster e não o leem. Por outro lado, Auster é tremendamente popular na Europa, e foi traduzido para mais de 20 idiomas, e edições estrangeiras constituem a maior parte de suas vendas.

A crítica não é possível em um mundo maniqueísta, é claro, e os EUA são muito bons em marginalizar escritores que tentam criticar o país de uma maneira fundamental. Os americanos não estão interessados, de qualquer forma, ​​em tais coisas, e é por isso que a censura explícita é realmente desnecessária nos EUA. Mas o resultado é que, como na famosa pintura de Goya, Saturno devorando seu filho, os EUA estão agora a implodir, comendo-se vivos. Argumentei isto mais recentemente, em 2006, em Dark Ages America, e os dados comprobatórios que se acumularam desde então são enormes. Não há uma única instituição americana que não esteja seriamente corrompida, e eu poderia ficar aqui por várias horas documentando isso. Em vez disso, deixe-me apenas citar alguns exemplos:

1. Ronald Dworkin, um dos principais intelectuais da América, fez um ensaio há alguns meses na New York Review of Books, mostrando que a Suprema Corte tornou-se um tribunal de homens, não de leis. No caso de 5 entre 9 julgamentos, ele ressalta, as decisões são normalmente feitas com antecedência, em uma direção política de direita, e então a justificação das decisões é colocada para fora após o fato, ainda que muitas vezes viole a Constituição.

2. Em Academically Adrift, os sociólogos Richard Arum e Josipa Roksa relatam que, após dois anos de faculdade, 45% dos estudantes americanos não aprenderam nada, e depois de quatro anos, 36% não aprenderam. A maioria dos estudantes define a faculdade como uma experiência social, não acadêmica. Metade dos alunos no seu estudo disse que não tinha tido uma única disciplina no semestre anterior que exigisse mais de 20 páginas de escrita, e um terço disse que não tinha feito nenhuma disciplina que exigisse mais de 40 páginas de leitura. Uma pesquisa lançada em 04 de julho de 2011 mostrou que 42% dos adultos americanos não estão cientes de que os EUA declararam a sua independência em 1776, e este número aumenta para 69% para a faixa etária de menores de 30 anos. 25% dos americanos não sabem de que país os Estados Unidos se separaram. Uma pesquisa recente da revista Newsweek revelou que 73% dos americanos não conseguem dar a versão oficial de por que lutamos na Guerra Fria, e 44% são incapazes de definir a Declaração de Direitos. Uma pesquisa realizada no sistema de ensino público de Oklahoma trouxe à tona o fato de que 77% dos alunos não sabiam quem George Washington era. Em várias cidades, as bibliotecas foram fechadas por falta de financiamento e, provavelmente, de interesse também. Em janeiro passado, um sério candidato presidencial elogiou os Pais Fundadores por "trabalhar incansavelmente" para abolir a escravidão, quando, na verdade, esses fundadores concordaram que uma pessoa negra legalmente constituía 60% de um ser humano, e consagraram a escravidão na Constituição. Ele também afirmou que o governo dos EUA foi conivente com o chinês em abolir o dólar. Este indivíduo, Michele Bachmann, que é essencialmente uma idiota, tem uma enorme liderança política; milhões de americanos a consideram como material presidencial.

3. No rescaldo do crash de 2008, as mesmas pessoas que promulgaram a ideologia que levou ao crash foram nomeadas como assessores econômicos do presidente: Lawrence Summers, Timothy Geithner e Ben Bernanke. Nem um único líder financeiro de Wall Street enfrentou a prisão. De fato, as principais figuras corporativas que levaram a economia para baixo foram premiadas com bônus enormes; alguns protegidos encontros em lugares prestigiados como a Universidade Johns Hopkins e o Instituto Brookings. Enquanto isso, as próprias práticas que levaram ao crash, tais como derivativos, permuta de crédito e similares, agora estão sendo buscados com ainda mais vigor do que eram antes do crash. O Nobel em economia Paul Krugman pergunta, um tanto retoricamente, como é que, na esteira do óbvio fracasso do capitalismo de casino e do neoliberalismo, a culpa pelo crash não é dos bancos (que receberam socorro de cerca de US $ 19 trilhões) e das corporações, mas do setor público?

4. Entre 1987 e 2007, o número de norte-americanos tão inválidos por causa de transtornos mentais que se qualificam para a renda de seguridade suplementar ou o seguro de invalidez da segurança social aumentou 2,5 vezes, de modo que 1 de cada 76 americanos agora pertence a esta categoria. Um de cada setenta de seis. Para as crianças, o aumento é de 35 vezes durante o mesmo período de tempo, e a doença mental é hoje a principal causa de incapacidade entre esta população. Uma pesquisa com adultos americanos, realizada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, 2001-3, descobriu que 46% deles preenchiam os critérios da Associação Americana de Psiquiatria por ser doente mental em algum momento de suas vidas. Dez por cento dos americanos com mais de seis anos de idade agora tomam antidepressivos, e eu li em algum lugar que, em termos de mercado global (ou seja, em dólares, em vendas), o consumo americano dessas drogas equivale a 2/3 do o mundo inteiro, para um país que tem menos de 5% da população planetária.

(Algum tempo atrás eu vi uma pequena placa satírica que tinha o título: “às 7 da noite no Salão Paroquial”. Depois seguia segunda-feira: Alcoólicos; terça-feira: esposas abusadas; quarta-feira: transtornos alimentares; quinta-feira: toxicodependência; sexta-feira: suicídio adolescente, sábado: sopa e, finalmente, sermão do domingo, às 9:00: "O Futuro Jocundo da América")

5. A infraestrutura nos Estados Unidos está desmoronando, e não há dinheiro para consertá-la. Há também, em alguns casos, a oposição ideológica a consertá-lo. Os diques de Nova Orleans estão da mesma forma agora do que eles eram antes do Katrina. Eu li um artigo há algum tempo sobre a tentativa de resolver isto, a nível estadual ou municipal, não me lembro, e os vereadores afirmaram que não queriam seguir em frente, porque seria necessário um esforço de cooperação, e isso, segundo eles, significava o socialismo. Então, aparentemente, trabalhar juntos é equivalente ao socialismo, e é melhor correr o risco de ter outro Katrina do que isso.

6. A dívida nacional está agora em mais de US $ 14 trilhões, e o número oficial da pobreza e da fome é de 45 milhões de cidadãos. Isso com base em critérios que são bastante obsoletos. Quase 20% dos adultos americanos estão fora do trabalho, e com poucas perspectivas de emprego, os economistas dizem-nos, para os próximos dez anos.

7. O presidente agora tem o direito, ainda que viole os Acordos de Genebra, de designar qualquer cidadão americano, e na verdade qualquer um no planeta, como inimigo, e ordenar que ele ou ela seja assassinado. Mas não para por aí. Em um ensaio intitulado "Os desaparecidos da América", enviada ao truthdig.com em 18 de julho de 2011, Chris Hedges escreve:

"A tortura, detenção prolongada sem julgamento, humilhação sexual, estupro, desaparecimento, extorsão, pilhagem, assassinato aleatório e abuso tornaram-se, como na Argentina durante a Guerra Suja, uma parte do nosso próprio mundo subterrâneo de locais de detenção e centros de tortura... Nós sabemos de pelo menos 100 presos que morreram durante os interrogatórios em nossos ‘locais sombrios’... Há provavelmente muitos, muitos mais cujo destino nunca foi tornado público. Dezenas de milhares de homens muçulmanos passaram por nossos centros de detenção clandestinos sem o devido processo. ‘Nós torturamos pessoas sem piedade’, admitiu o general aposentado Barry McCaffrey. ‘Nós provavelmente assassinamos dezenas deles... tanto as forças armadas quanto a CIA’. Dezenas de milhares de norte-americanos estão sendo mantidos em prisões de segurança máxima, onde são privados do contato e psicologicamente destruídos. Trabalhadores sem documentos são levados e desaparecem de suas famílias por semanas ou meses. [Na verdade, nos dois anos após o discurso de Obama pedindo a reforma da imigração, o governo dos EUA deportou um milhão de imigrantes]. Unidades de polícia militarizada quebram as portas de cerca de 40.000 americanos por ano para transportá-los na calada da noite, como se eles fossem combatentes inimigos. Habeas corpus não existe mais".

8. O exército dos EUA, que absorve 50% do orçamento discricionário, é aparentemente incapaz de vencer duas guerras em dois pequenos países. Na verdade, ele não teve uma vitória real desde a Segunda Guerra Mundial, após o que decidiu cutucar ditadores vira-latas e nações menores.

9. Um relatório de inteligência dos EUA lançado em 2008, "Tendências Globais 2025", prevê um declínio constante no domínio americano nas próximas décadas, com a liderança dos EUA corroendo "a um ritmo acelerado", nas "arenas políticas, econômicas e, possivelmente, culturais". Que eu saiba, o presidente nunca mencionou este relatório, nem ninguém trabalhando no governo.

10. Em 19 de Julho de 2010, o Washington Post informou que a Agência de Segurança Nacional (NSA) tem escritórios em 33 complexos de edifícios chegando a 1,5 milhões de metros quadrados de espaço, na capital e na área suburbana. Todos os dias, sistemas de coleta na NSA interceptam e armazenam 1,7 bilhões de e-mails e telefonemas de cidadãos americanos, o que equivale a um grande sistema de espionagem doméstica. Escrevendo na revista The New Yorker em 23 de maio de 2011, Jane Mayer informou que a NSA tem três vezes o orçamento da CIA, e tem a capacidade de baixar, a cada 6 horas, as comunicações eletrônicas equivalentes a todo o conteúdo da Biblioteca do Congresso. Eles também desenvolveram um programa chamado Thin Thread, que permite que computadores examinem o material em busca de palavras-chave, e eles coletam os registros de contas e os números de telefone que foram discados por todos no país. Em violação às leis de comunicação, ATT, Verizon e BellSouth abriram seus registros eletrônicos para o governo. No auge de sua insanidade, a Stasi na Alemanha Oriental estava espionando 1 de cada 7 cidadãos. Os EUA agora estão espionando 7 de cada 7.

11. Agora você pode ir para a cadeia nos Estados Unidos simplesmente por falar. No final de julho deste ano, o ativista ambiental Tim DeChristopher foi condenado a dois anos de prisão por sua declaração repetida de que a proteção ambiental exigia desobediência civil, ou seja, não violenta. Imagino se o mesmo juiz, Dee Benson, também teria colocado Rosa Parks e Mahatma Gandhi na cadeia, se estivesse por ali.

12. Finalmente, o meu favorito, que também ocorreu em julho de 2011. É um pequeno incidente, mas de alguma forma é o símbolo do que aconteceu com a América durante os últimos 60 anos. A polícia da Geórgia fechou uma barraquinha de limonada de três meninas, com idades entre 10-14, que estavam tentando economizar para uma viagem a um parque aquático local. A polícia disse que elas não sabiam o que tinha na limonada, e, além disso, que as meninas precisavam de uma licença de negócio, uma licença de vendedor ambulante, e uma autorização de alimentos, a fim de manter o negócio. As licenças, por sinal, custam US $ 50 por dia ou US $ 180 por ano.

Eu vou parar com 12 exemplos, mas como eu disse, nós poderíamos ficar aqui a noite toda com esse tipo de dados.

Apesar de não entrar na questão da identidade negativa por si só, o escritor francês Denis Duclos, que é diretor de um prestigiado instituto de pesquisa em Paris, o CNRS, relacionou o problema da obsessão em ter um inimigo, e da violência que resulta disso, em seu livro de 1994, Le complexe du loup-garou, o complexo de lobisomem. Em seu epílogo da edição de 2005, ele escreve que a América sempre dependeu de uma figura como o lobisomem, uma sombria besta selvagem que supostamente quer destrui-la. A besta muda de conteúdo, ele diz, mas a forma é sempre a mesma. No centro disso há o medo terrível que os americanos têm do vazio, que é uma ansiedade de não existir, e que disfarçam com um otimismo hiperativo. Uma sociedade curiosa, ele escreve; um povo que realmente não sabe quem eles são. Tal como os romanos, eles sempre se veem sob o cerco, o que poderia desencadear num populismo fascista. "O medo americano do monstro sempre marcou sua história, seja este existindo no interior ou no exterior. Isto leva a isolar o país em uma espécie de psicose coletiva que só pode contribuir para a instabilidade internacional".

Que é como a maior parte do mundo nos vê, é claro: uma pesquisa internacional de alguns anos atrás, que fez a pergunta: qual nação você acha que é a maior ameaça à paz mundial, resultou na nomeação dos Estados Unidos como de longe o candidato óbvio. Escrevendo na revista Der Spiegel em agosto passado, Jakob Augstein argumenta que os EUA são basicamente um estado falido, realmente não são mais parte do Ocidente, e que a Europa necessita se proteger, e manter distância do que é uma cultura política muito diferente, e aparentemente insana. Sua evidência para esta afirmação, e para a desintegração social dos Estados Unidos, é tristemente familiar. "Não há", ele conclui, "libertação à vista."

Algum tempo atrás eu recebi um e-mail de um fã que escreveu: "Acabei de ler The Twilight of American Culture e Dark Ages America. Quero agradecer a você por seus livros brilhantes e sem sentido. Achei este comentário bastante divertido, porque é claro, o cara estava certo: Os livros são inúteis no que eles não têm capacidade de mudar qualquer coisa. O que significa saúde mental em um caso individual? Pelo menos isto: que a pessoa saiba sua narrativa pessoal, seja capaz de vê-la de fora, como é, e como resultado dessa transparência, compromete-se a fazer algo diferente. Talvez o mesmo seja verdade de uma nação, ou de uma civilização, eu não sei. Mas o que eu sei é que há muito pouca compreensão, nos Estados Unidos, sobre qual é a narrativa subjacente, ou mesmo se há uma narrativa subjacente. Há também muito pouco interesse em pensar sobre a identidade nacional, ou a falta da mesma, de modo mais do que superficial, tal como é provido, por exemplo, pelo New York Times. Em tal situação, a mudança simplesmente não é possível, as chances de que vamos continuar neste caminho inconsciente são esmagadoras. Nesse sentido, meu trabalho é realmente inútil. Como escritor e crítico social, eu não posso impedir o avião de cair, ninguém pode. Eu estou um pouco como o engenheiro que examina os destroços, localiza a caixa preta, a desmonta, e escreve o relatório, o post mortem. E isso, creio eu, tem algum pequeno valor. Pois nós finalmente precisamos saber Por que a América falhou.


[i] NT: Forma pejorativa de se referir aos árabes.
[ii] NT: No original, “tarring and feathering”, que se refere a uma prática usada como punição não oficializada em que se derramava piche seguido de penas sobre uma pessoa.
Postado por Janos Biro às 07:55

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Olá,

Acho que o mais interessante no texto é entendê-lo como uma crítica à cultura civilizada como um todo, e não à cultura estadunidense especificamente. Os EUA são apenas o vetor de propagação. Em outros textos, Morris compara os EUA ao império Romano.

Outra crítica interessante o autor faz, e que não aparece neste texto, é que o movimento Tea Party e o movimento Occupy, por mais opostos que pareçam, são impulsionados pela mesma ideia de que os valores originais dos EUA foram deturpados, como se a culpa fosse de grupos de interesse, e não da cultura como um todo. Isso explica porque o autor é tão pouco conhecido.

Outra coisa é que o autor estudou religião. Ele compara a crença dos estadunidenses de que são um povo escolhido, com o princípio expansionista das religiões ocidentais.

"Riqueza material infinita baseada no esforço individual é o ideal estadunidense e o desejo de mudar esse paradigma é praticamente nulo. Inclusive os pobres abraçam este mesmo sonho, motivo pelo qual John Steinbeck notou que estes viam a si mesmos como 'milionários temporariamente na falência'".

"Uma sociedade em que os fundamentos são a busca de status e a aquisição de objetos não pode funcionar".

"O psicoterapeuta Douglas LaBier, de Washington, tem um nome para esse tipo de comportamento, que ele afirma ser comuníssimo nos Estados Unidos: síndrome da falta de solidariedade".

"Basicamente, é um termo elegante para designar quem não dá a mínima para ninguém senão para si próprio. LaBier sustenta que solidariedade é uma emoção natural, mas logo cedo perdida pelos americanos porque nossa sociedade dá foco nas coisas materiais e evita reflexão interior."

"Isso se manifesta numa espécie de ausência de alma, algo de que a capital Washington é um exemplo perfeito. Se você quer ter um amigo na cidade, como Harry Truman disse, então compre um cachorro".

Os EUA foram os responsáveis por fazer as pessoas do mundo inteiro acreditarem no imperativo da mobilidade. "Berman nota que as estatísticas mostram que a imensa maioria das pessoas nos Estados Unidos morrem na classe em que nasceram. Ainda assim, elas acham que um dia vão ser Bill Gates. Têm essa 'alucinação', em vez de achar um absurdo que alguém possa ter mais de 60 bilhões de dólares, como Bill Gates".

Sobre ter mudado para o México: "Há uma decência humana no México que não existe nos Estados Unidos". Porém, creio que o problema é sistêmico.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Explicações? Menosprezaram a história de luta do brasileiro



Lúcio de Castro

Lúcio é carioca, formado em História e Jornalismo, e hoje trabalha como repórter da ESPN Brasil e comentarista do Bate-Bola 1ª edição
18/06/2013

Explicações? Menosprezaram a história de luta do brasileiro
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Juan Arias é um premiado e competente intelectual. Homem de formação sólida, ocupou nos últimos anos ao posto de correspondente do bom jornal espanhol El Pais no Brasil. Sua inquestionável formação não o livrou de um imenso lapso ao reportar e analisar as manifestações que pipocam Brasil afora nos últimos dias. No dia 12 de junho, com os protestos engatinhando e parecendo ainda apenas serem contra um aumento de vinte centavos nas passagens, abriu seu relato com as seguintes palavras: "Brasil, pouco acostumado a protestar na rua, desta vez se levantou nas principais cidades do país contra o aumento das passagens do transporte público."

O jornalista desconhece a essência do que construiu boa parte da história do Brasil: sangue, protestos, manifestações, revoltas. Dezenas, centenas, milhares de revoltas. Nada por aqui foi conquistado sem reivindicação e muita revolta. Justiça seja feita, não está sozinho em sua desinformação. Muita gente boa por aqui acredita nessa história oficial e nesse chavão que pretendeu rotular o povo brasileiro como "bundão". Um rótulo conveniente e disseminado não à toa por quem tem tal interesse.

Um olhar sobre a história do Brasil é mergulhar na história de um povo que lutou e luta para driblar o projeto original (ou a ausência dele) que estava previsto desde sempre para ele: ser mão de obra desqualificada, ser escravo, ser trabalhador braçal sem direitos. E se hoje esse projeto está desmoralizado, e o país tem um papel importante no mundo, é porque muito sangue rolou. E esse projeto não foi aceito com conformação.

Desde sempre estava expressa a vontade soberana de um povo em não aceitar dominações vindas de fora. Já vão longe, mais de quatro séculos, a Confederação dos Cariris, a Revolta da Cachaça, do Sal, e tantas outras. Vieram os Mascates, os confederados do Equador, a revolução Pernambucana. As Conjurações. Mineira, Carioca, a Conspiração dos Suassunas, Praieira, Mascates. Diferentes razões, muitas vezes diferentes camadas sociais, mas, na maior parte delas, o sentimento de ser senhor da própria história.

Foram dezenas de revoltas indígenas. Outras tantas escravas e negras. O Maranhão com seus Balaios, a Bahia de tantas e inúmeras revoltas lutas pela independência, da Conjuração, dos Malês, da Sabinada, dos Guanais e da Guerra do Conselheiro, Belém e seus Cabanos, o Rio de João Cândido contra a Chibata e da Vacina e tantas outras que adoro o nome, como "Mata-Galegos", o sul da Farroupilha, do Contestado, as revoltas paulistas. Mesmo as mulheres brasileiras, muito a frente do seu tempo, viveram em Natal sua revolta. Tem tanta coisa, tanta história de revolta em nossas páginas que forçosamente irei cometer o pecado da omissão.

Com uma história dessas, por que diabos esses caras acreditaram quando tentaram nos jogar a pecha de bundões? Se a intenção era alimentar a conformidade, falharam. Basta lembrar mais uma, que já ia sendo omitida: a Revolta do Vintém, no Rio do fim do século XIX, que tanto tem a ver com o que acontece agora. Começou contra o aumento do bonde e virou algo bem maior.

Aqui vale a pequena digressão: a história da polícia militar e sua criação nesse país, a mesma que agora reprime passeatas sem o menor preparo e com inacreditável violência, a mesma que mata e tortura todos os dias na periferia (com as exceções de praxe), está intimamente ligada aos protestos de nossa gente. A primeira polícia nasce no Rio, sempre ao lado da corte. Depois, nos anos 30 do século XIX, vem as demais, com o intuito inicial e preponderante de reprimir as revoltas populares, que gritavam nas ruas contra a legitimidade do monarca que chegava. Nasce com o DNA e a função preponderante de bater em pobre, preto e povo. Com a certeza de que isso não é crime. A certeza dessa impunidade cresce nos anos de chumbo. O que se vê agora é apenas a sequência dessa trajetória. Que enquanto não for refundada, enquanto não se passar a limpo a história do país, dos crimes de estado, sempre será assim.

Voltemos as revoltas que marcam nosso povo. Veio o século XX e mais uma vez o povo tava nas ruas. Sempre. Perdoai, falar que é uma gente "pouco acostumada a protestar nas ruas" é desconhecer o histórico da mudança de uma capital. Pois mudaram uma capital, construíram uma cidade nova no meio do nada com a ilusão de que os governantes estariam livre de pressão. Governar no Rio não era fácil...Panela de pressão. Povo na rua o tempo inteiro...

Por uma dessas ironias, deixaram o projeto para Niemeyer. Humanista de corpo e alma, pensou com sua pena lugares e grandes vãos para protestos, para que o povo ocupasse. Num de seus desenhos, sentenciou que um dia a praça seria do povo e que nesse dia os direitos humanos e as liberdades "seriam conquistas irreversíveis". Mais uma vez o projeto de alijar o povo dava errado. Brasília virou um caldeirão de protestos semanais. Os anos de chumbo, muita gente boa caindo, cem mil nas ruas... A redemocratização, Diretas Já, milhões na rua. Tem pouco tempo, e o povo botou um presidente pra fora. Bundões? Podem querer relativizar, dizer que foi por isso, aquilo, mas sem a gente das ruas gritando, fazendo sua hora, nada teria acontecido...

E eis que estamos na rua novamente...A dificuldade de alguns em entender o que está acontecendo é o desconhecimento de nossa história, de nossa gente, de nossa essência.

O temor de muita gente boa em ver o que é legítimo com alguma desconfiança tem suas razões. O medo de desandar, dos oportunistas, daquela turma que marchou com Deus pela liberdade. (O temor de ter que relembrar a genialidade de Zé Keti: "Marchou com Deus pela democracia/ agora chia/ agora chia"!). Da mesma turma que outro dia pedia que a polícia metralhasse a favela e agora reclama. Quando o clima é de barata voa e a boiada estoura, os oportunistas sempre tentam fincar sua bandeira. Num país que nos últimos anos fez imensos progressos, a brecha para fincar a bandeira do oportunismo andou pequena. Mas nada deve ser temido. Povo na rua nunca deve ser razão de temor. Mesmo as eventuais distorções não podem assustar. A história não tem pressa. Mesmo a eventual despolitização que tentam impor ao movimento não passa.

Chegamos aos dias de hoje. Nesse caldeirão que tanto dificulta a análise dos nossos cientistas sociais, um elemento não pode ser esquecido e é dele que tratamos até aqui: menosprezaram demais um povo que tem em seu DNA os protestos e a revolta. Acreditaram na história do povo bundão. Valendo-se de bons ventos da economia, de inegáveis indicadores que melhoravam, iniciou-se uma farra. Cujo ápice tem a ver com nossa seara de esportes. Em nome da Copa do Mundo, em nome da Fifa, foram entregando tudo, passando por cima da lei. É claro que não digo aqui que esse é o estopim. Seria ridículo. Mas isso é elemento forte desse caldeirão. A farra do boi que some com milhões e constrói obras faraônicas, a volta do estado de exceção, com remoções à margem da lei imperando. Um templo sagrado destruído no Rio igonorando a lei como foi o Maracanã enquanto o mandatário estava em Paris de guardanapo na cabeça. Não foi uma nem duas vezes que escrevi aqui em textos antigos ou falei em nossos programas que isso teria uma resposta da população, que era uma falta de conhecimento de tudo achar que iriam seguir brincando e sumindo com dinheiro e nada aconteceria. Vinha gente de fora e debochava, falando em "dar um chute no traseiro. Elimina-se o povo da festa. Em algum momento vem a conta. Estive nas ruas hoje. Lembrava do Maracanã quando o povo xingava o Cabral...Escrevi tantas vezes que a vingança viria...Tinha motivos para estar especialmente comovido com tudo.

Como foi possível um governador destruir um símbolo por cima da lei e entregar ao amigo que empresta jatinhos? Como foi possível um prefeito ignorar lei ambientais, modificar, para permitir empreendimentos imobiliários, campos de golfe? Mais incrível foi terem achado que iam fazer tudo isso e não prestariam contas nas ruas.



Foi Eduardo Galeano que exemplarmente definiu o que foi o período na mineração no Brasil, dizendo que "o ouro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra". Tantos anos depois, nos vemos diante do mesmo fenômeno. Agora é uma copa de confederações, uma copa do mundo, que vai deixando buracos no Brasil, ouro na Fifa e na conta de alguns.

Dá pra imaginar o que passa na cabeça da presidenta a essa altura. Se arrependimento matasse...Ah, essa copa...Ah, essas Olimpíadas...Dona de bela biografia de luta e resistência, tem mil pecados e responsabilidades nisso tudo, principalmente porque não soube dizer não a uma situação e acordos que herdou. Até ter que engolir o aperto de mão com José Maria Marin. Se omitiu em tantas coisas... E a óbvia maldade risonha de Blatter rindo ao botar fogo na vaia do estádio. Quem muito se abaixa... Quem muito faz concessão. Nessa história toda, está ficando sozinha com o ônus. Lula, que depois de rasgar sua biografia perdeu o pudor em tudo, segue rindo e lucrando com a copa, em suas viagens e palestras para empreiteiras. Fazendo lobby pra Ricardo Teixeira, Marin...Governadores, políticos, todos...Dilma ficou com o ônus. Pediu isso ao se omitir. Deixou Cabral rasgar a constituição e passar por cima dela no Maracanã. A alma dos removidos pesa, os milhões consumidos em elefantes brancos enquanto o povo pena nos hospitais e escolas debilitadas, no transporte. A conta chegou.

Está sendo cobrada por um povo acostumado a fazer isso. Por mais que ainda queiram dizer que não.

Ps- depois de testemunhar tudo que vi, sei que foram muito mais de cem mil. Ainda tenho muitas perguntas para fazer, tentar responder, várias coisas que não entendi ainda. Os próximos dias vão dizer, ajudar a entender. Mas tenho certeza de uma coisa: o DNA de um povo que forjou sua história com muita rua e luta foi o decisivo. Muitas vezes brutalmente reprimido por um estado que sempre o deixou à margem. Se reinventando nas brechas, até a próxima luta ou revolta. Não menosprezem. Não tentem distorcer a história dele.

Quanto a Fifa, melhor botar as barbas de molho. Acharam que vinham para um passeio. Teriam um estado de exceção, removeriam casas, debochariam, dariam pé na bunda. Sempre com a cumplicidade colonizada e desonesta de alguns serviçais que vão levando suas generosas partes. Destruiriam nossos templos e nos deixariam de fora da festa. O povo no seu lugar de hábito mandou avisar que vai participar da festa. Do seu jeito. Como ele decidir. Soberano.